Qual é o Significado da Fórmula “Não...” nos Dez Mandamentos?

Benjamin Lange

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O primeiro mandamento – como, aliás, quase todos os mandamentos do Decálogo – começa com a conhecidíssima palavra “Não”. Esta é, talvez, a palavra mais típica dos Dez Mandamentos. E, de certa forma, também um bicho-papão; afinal, ela não soa como se Deus apenas proibisse, restringisse e freasse? Tal palavra tem uma tremenda força explosiva, por ser tão especial – e isso tanto em relação à sua gramática quanto ao seu efeito. As duas particularidades têm relação com o fato de um Deus singular estabelecer princípios singulares. E ambas as particularidades nos causam admiração.

Uma formulação singular

Todas as línguas têm seu jeito de formular proibições. Em português, o mais comum é simplesmente usar o imperativo acompanhado de negação. Por exemplo: “Não vá embora!”. O hebraico tem a característica peculiar de que é impossível negativar o imperativo. Por isso, há uma forma substitutiva para as proibições, também chamada de vetitivo. Um vetitivo é uma proibição relacionada a um contexto específico e sem validade geral para além dele – como no português – “Não vá embora!” Mas o vetitivo não basta para Deus ao dar os Dez Mandamentos ao seu povo. Ele quer expressar mais do que uma proibição que valha somente em um contexto bem restrito. Ele quer dar princípios autoritativos e de validade geral. Além disso, quer deixar claro por que Israel deve obedecer a esses princípios. Por esse motivo, os mandamentos são formulados mediante uma forma gramatical que só se torna característica por seu uso nos Dez Mandamentos e também em outros textos legais da Bíblia. Não dá para dizer que Deus esteja introduzindo uma gramática nova, mas é quase isso.[1] A forma gramatical que ele usa é chamada de proibitivo. Ela não é nada fácil de traduzir, pois abrange diversos aspectos. O que, portanto, há de tão especial nela?

Ação impensável

A formulação é especial porque também pode ser entendida como previsão do futuro. Isso é parecido com o português, quando se diz: “Você não vai sair agora!”. Isso não pretende ser uma profecia ou previsão do futuro, mas expressa que determinada ação é absolutamente inimaginável e impensável.[2] Isso é muito importante para entender os princípios do Decálogo. Por que seria impensável ter outro deus além do Senhor, usar seu nome em vão, matar, roubar etc.? Uma resposta óbvia seria: porque isso iria contra a vontade de Deus e sua autoridade. No entanto, outra resposta igualmente válida seria: porque o salvo não tem mais necessidade de agir assim. Com isso, o “você não fará” se transforma em “você não precisa fazer”. Quem pertence a Deus não precisa de outros deuses, não precisa adquirir riquezas pelo roubo ou cobiçar algo que o próximo tem, pois está debaixo do domínio e do cuidado do melhor Senhor de todos. Por fim, mais um motivo para que seja impensável se opor aos princípios de Deus seria que isso contradiz o fato da própria salvação. Isso seria impensável porque esse Deus salvou Israel da morte certa, trouxe-o para junto de si e estabeleceu um relacionamento íntimo e próximo com ele – algo absolutamente imerecido. Assim, qualquer pessoa que entendeu isso considerará impensável e totalmente inimaginável transgredir contra esse Deus maravilhoso! Qualquer um que é salvo da morte é grato a seu salvador. Alguém recém-apaixonado não trairá a pessoa amada no instante seguinte. A ilustração do relacionamento amoroso não é casual, mas está diretamente incluída aqui. Ao usar a formulação especial que significa literalmente “Você não terá outro deus junto comigo”, Deus recorre a uma expressão que normalmente aparece em relações amorosas. Aqui fica claro por que os Dez Mandamentos começam com um prólogo: os princípios devem brotar como resultados lógicos daquilo que Deus fez em favor do seu povo, sendo observados mediante essa motivação. Qualquer outra atitude é impensável quando a pessoa realmente entendeu a grande salvação que experimentou.

Quem pertence a Deus não precisa de outros deuses, não precisa adquirir riquezas pelo roubo ou cobiçar algo que o próximo tem, pois está debaixo do domínio e do cuidado do melhor Senhor de todos.

Consequência lógica

Assim, a formulação especial “Não...” também poderia ser reproduzida como “consequentemente, não...” ou “por isso, é impensável que você”.[3] A formulação hebraica estabelece uma continuidade lógica com o que acabou de ser descrito: Deus salvou Israel, por isso a consequência lógica e razoável é servir-lhe. A consequência lógica de uma grande salvação é servir o Salvador.[4] O que Israel faz não se destina a estabelecer, merecer ou iniciar o relacionamento com Deus. Este já existe, a saber, o relacionamento íntimo que Deus começou com seu povo. Em consequência, Israel agora deve servir a Deus e manter-se longe de determinadas coisas. Portanto, a formulação especial contém, em comparação com um imperativo negativo normal, uma referência à motivação que sustenta a observação dos princípios de Deus.

Grande autoridade

Outro aspecto especial dessa formulação é o fato de ser especialmente penetrante e incisiva, impregnada de grande autoridade. O que Deus diz não é uma dica para tornar a vida mais agradável ou melhor. É expectativa e determinação da mais alta autoridade divina possível. Assim como os pais dizem ao filho “Você não vai quebrar isso!”, Deus também tem expectativas e determinações para seu povo. Embora o relacionamento de Deus com Israel seja tão íntimo que pode ser comparado a um casamento, é também muito mais que isso. Afinal, os parceiros são extremamente desiguais. O ser humano não está no mesmo nível que Deus. Não são parceiros equiparáveis em suas ideias e vontades. O Criador dos céus e da terra, o Salvador do povo de Israel, está muito acima do ser humano e é o único que tem o direito de estabelecer princípios que precisam ser observados. Simplesmente pelo fato de expressá-los com sua autoridade.

Validade geral

Uma última diferença entre a expressão “Não...” (proibitivo) e o imperativo negativo convencional (vetitivo) é que a primeira forma não se aplica somente a determinada situação, mas tem uma validade muito mais geral. As proibições dos dez princípios valem para cada israelita e em situações de vida muito variadas. Elas têm validade geral porque o Deus absoluto pode estabelecer princípios absolutos e gerais. É claro que foram ditos a determinado povo em uma situação específica, por isso não têm validade para qualquer pessoa (o que se aplica, p. ex., ao mandamento do sábado). Ainda assim, eles contêm princípios que valem até hoje e expressam a vontade de Deus. São o que chamamos de leis apodíticas, que não regulam apenas casos específicos, mas formulam um princípio que vale expressamente para todos. Também isso, aliás, é absolutamente extraordinário nas leis daquela época. Os povos em torno de Israel formulavam suas leis de modo diferente, a saber, como casos específicos.[5] Eles não podem reivindicar validade geral porque não têm um Deus único e absoluto, mas muitas divindades rivais. Apenas o Deus verdadeiro, o Deus de Israel, pode prescrever a verdade de forma absoluta e geral. Assim, o tipo de formulação também sublinha, ao mesmo tempo, a reivindicação de Deus à soberania.

Na realidade, é espantoso que ninguém no Antigo Oriente Próximo tenha tido a ideia de usar essa formulação. Teria sido muita arrogância. Mas o que é arrogância para todos os outros reis e deuses das nações é perfeitamente apropriado para o Deus verdadeiro. Somente ele pode determinar, com validade geral, o que deseja ver no relacionamento pactual com seu povo.[6]

Um relacionamento singular

Além da particularidade gramatical da expressão “Não...”, há um segundo aspecto singular, relacionado à pessoa do interlocutor. Ela se dirige à segunda pessoa do singular (“tu”). Isso soa comum, mas não é. Nenhuma outra lei da época usa o tratamento “tu”. Naquela época (como também hoje), os textos legais são formulados na terceira pessoa: “Quando um cidadão derruba uma árvore no pomar de outra pessoa, deverá pagar meia mina de prata”.[7] O tratamento por “tu” só era usado em contextos nitidamente mais pessoais, nos quais havia um relacionamento claro estabelecido. Isso se referia por exemplo à instrução sapiencial para alguém mais jovem ou a alianças entre indivíduos. A rigor, naquela época as alianças entre povos não eram celebradas entre duas nações, mas sempre entre os reis dessas nações como indivíduos e representantes.[8] Por isso, a linguagem típica dos contratos daquela época era o “tu”. Também Deus se dirige a Israel nesse nível pessoal. Os princípios não são determinações abstratas, mas estão aninhados em um relacionamento. Um Deus pessoal, não um “alguém” impessoal, fala com um interlocutor pessoal e concreto – mas, afinal, quem é ele?

O tratamento por “tu” só era usado em contextos nitidamente mais pessoais, nos quais havia um relacionamento claro estabelecido. Deus se dirige a Israel nesse nível pessoal.

Uma honra inacreditável

Quem, afinal, é esse “tu” a quem se dirige o texto aqui? Seria o povo como um todo? Afinal, é possível que Deus se dirija ao povo inteiro como uma unidade (singular coletivo; cf. Êxodo 4.22). Embora seja gramaticalmente possível, isso não combina aqui, pois o interlocutor é claramente um indivíduo israelita, não o povo inteiro. Isso se torna claro em expressões como, por exemplo, “tu”, “teus filhos ou filhas”, “teus servos ou servas” (v. 10, NVI).

Imagine que você é um israelita ao pé do monte. Deus está falando em público do céu e se dirige ao povo todo, mas ainda assim interpela pessoalmente cada um dos israelitas! Ele não fala apenas com quem está à sua esquerda ou à sua direita, nem abstratamente ao povo inteiro; antes, dirige-se ao indivíduo – VOCÊ! O que ele diz é o que VOCÊ deve fazer – independentemente de o seu vizinho à esquerda ou à direita também obedecer. Deus não se relaciona apenas com o povo como um todo, mas com cada israelita. Isso é totalmente único naquela época. Em nenhum outro contrato de aliança o indivíduo de um povo é destacado dessa forma. Rei nenhum daquela época se rebaixaria a falar com inúmeros indivíduos em um contrato, mas apenas se dirige a outro rei. Com isso, Deus concede uma honra inacreditável aos israelitas. Ele trata cada um como pequeno rei – sim, poderíamos até imaginar o povo inteiro como um reino coletivo. E não é exatamente isso o que Deus disse antes? Ao anunciar a aliança em Êxodo 19.6, Deus já não afirmara que Israel seria um reino de sacerdotes? Israel é uma nação em que todos detêm posição de reis e sacerdotes! A forma de tratamento evidencia que esse relacionamento com Deus traz uma honra inacreditável para o ser humano – uma honra que, sem Deus, não existe em nenhum outro lugar neste mundo. É somente dentro do relacionamento com Deus que o ser humano experimenta tal honra.

Vale para cada um

Assim, a interpelação se dirige a cada israelita: o homem, a mulher, o filho, a filha, o servo, a serva etc. O fato de o tratamento não se dirigir apenas ao indivíduo fica claro com base na compreensão e na função dos textos legais daquela época. Sua intenção é sempre servir de exemplo e amostra. Eles citam princípios por meio de formulações que podem ser aplicados a outros casos. Para qualquer pessoa daquela época, estava claro que a lei “Não cobice a mulher do seu próximo” valia igualmente para as mulheres, significando para elas: não cobice o marido da sua próxima. Assim, a lei vale para cada israelita. Que tremendo! Deus fala do céu e se dirige a indivíduos, o que se expressa pelo “tu”.

Notas

  1. Aqui falta espaço para analisar as diferentes posições a respeito da avaliação da negativação no Decálogo. É verdade que o proibitivo existia como forma comum de negativação já antes do Decálogo e não se limita a textos legais, mas ainda assim fica claro que, antes do Decálogo, a forma que esse usa não era, por um lado, uma negativação típica nos textos legais, mas, por causa do Decálogo, se transformou em negativação característica da literatura legal em Israel; sobre isso, veja K. E. Kongou, Der Dekalog, Grundlage der Verbote der Torah? Ein Vergleich zwischen dem Dekalog und den anderen Verboten der Torah (Regensburg: Universität Regensburg, 2016), p. 254-255.
  2. Sobre o hebraico, confira ibid., p. 196-197.
  3. Dohmen, Exodus 19–40, 2. ed., Herders Theologischer Kommentar zum Alten Testament (Freiburg: Herder, 2012), p. 86.
  4. Uma formulação semelhante, aliás, também é usada por Paulo em Romanos 12.1: “Portanto, irmãos, pelas misericórdias de Deus, peço que ofereçam o seu corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Este é o culto racional [grego, logikos, lógico, razoável] de vocês”. Com “misericórdias de Deus”, Paulo se refere à grande salvação no plano de salvação de Deus, que ele descreveu em Romanos 1–11.
  5. Arnold, “Gesetzestexte im Alten vorderen Orient und im Alten Testament”, Zur Umwelt des Alten Testaments, ed. Helmuth Pehlke (Holzgerlingen: Hänssler, 2002), p. 114-153, esp. p. 133. As ocasionais formulações apodíticas que ainda assim aparecem estão em alianças ou na literatura sapiencial. Veja D. N. Freedman, G. A. Herion, D. F. Graf, J. D. Pleins e A. B. Beck, eds., The Anchor Bible Dictionary: Volumes I-VI, vol. 4 (Nova York: Doubleday, 1992), p. 245.
  6. Sobre as diferenças em relação aos textos legais de outros povos, veja John H. Walton, Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament (Grand Rapids: Baker Academic, 2006), p. 295-298.
  7. Reprodução livre de uma lei do Código de Hamurabi (§59), veja Wilhelm Eilers, Codes Hammurabi: Die Gesetzesstele Hammurabis in der Übersetzung von Wilhelm Eilers (Wiesbaden: Marix, 2009), p. 44.
  8. Sobre isso e o que se segue, veja Joshua Berman, Created Equal: How the Bible broke with Ancient Political Thought (Nova York: Oxford University, 2008), p. 40-41.

Este artigo foi adaptado de Os Dez Mandamentos, por Benjamin Lange.

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Benjamin Lange (M.Th., University of South Africa) é professor de teologia, autor de livros e membro da comissão de tradução da versão bíblica alemã Elberfelder. Além de teologia, também estudou música e matemática. Frequenta a igreja dos irmãos em Darmstadt, na qual serve como um dos anciãos. Casado com Anna-Maria, tem dois filhos.

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