Sobre Verdades, Narrativas e Referenciais

Vivemos em uma época na qual a argumentação se torna apenas um discurso manipulativo, no qual o convencimento dos ouvintes tem precedência sobre os fatos.

Na clássica história infantil de C. S. Lewis sobre o mundo de Nárnia, no sexto livro, A Cadeira de Prata, há um diálogo entre um grupo que deseja provar a existência do sol e do leão Aslam (nesta história, Jesus é representado por um grande leão) a uma feiticeira que vinha mantendo um deles como prisioneiro por meio de mentiras e magia. Se você gosta do gênero fantasia, essa história fantasiosa é encantadora, e o diálogo abaixo representa muito do que ouvimos hoje em dia:

“De que sol vocês estão falando? Essa palavra significa alguma coisa?”

“Significa muito”, respondeu Eustáquio

“Poderiam contar-me como é o sol?”

“Por obséquio, Majestade”, disse o príncipe, com fria polidez. “Vê aquela lâmpada redonda e amarela iluminando a sala? O que chamamos Sol é parecido, só que é muito maior e muito mais brilhante e ilumina todo o Mundo de Cima. E em vez de estar preso no teto, está solto no céu.”

“Solto onde?” E enquanto pensavam na resposta, ela prosseguiu, com uma de suas risadinhas melodiosas: “Estão vendo? Quando vocês procuram saber o que deve ser realmente o tal de sol, não conseguem. Só sabem dizer que parece uma lâmpada. O sol de vocês é um sonho, e não há nesse sonho nada que não tenha sido copiado de uma lâmpada. A lâmpada é real; o sol não passa de uma invenção, uma história para crianças.”[1]

O grupo fica confuso em parte pelos argumentos e em parte pela magia que a feiticeira exerce. Até que um deles afirma:

“Aslam existe.”

“Aslam?” Disse a feiticeira, apressando ligeiramente o repenicado de seu instrumento. “Que lindo nome! Que significa Aslam?”

“Aslam é o grande Leão que nos chamou de nosso mundo”, disse Eustáquio, “e aqui nos enviou em busca do príncipe Rilian.”

Leão, o que é um leão?”, perguntou a bruxa.

“Ora, não amole”, respondeu Eustáquio. “Não sabe? Como é que eu vou descrever um leão? Já viu um gato?”

“Claro, adoro gatos”, respondeu a feiticeira.

“Bem, um leão é um pouquinho… só um pouquinho, hein… parecido com um gato enorme com uma juba. E é amarelo. E é incrivelmente forte.”

A feiticeira balançou a cabeça:

“Acho que o leão de vocês vale tanto quanto o sol. Viram lâmpadas, e acabaram imaginando uma lâmpada maior e melhor, a que deram o nome de sol. Viram gatos, e agora querem um gato maior e melhor, chamado leão. É puro faz-de-conta, mas, francamente, já estão meio crescidos demais para isso. Já repararam que esse faz-de-conta é copiado do mundo real, do meu mundo, que é o único mundo? Já estão grandes demais para isso, jovens. […] Não há Narnia, não há Mundo de Cima, não há céu, nem Sol, nem Aslam.[2]

Esse tipo de conversa é bastante comum atualmente. Quando se tenta demonstrar a verdade, somos confrontados por questionamentos que nos deixam desnorteados. Tudo é questionado: gênero, sexualidade, honestidade, história, verdade… E, ao tentarmos basear nossa argumentação na verdade, percebemos que a própria noção de verdade é relativa. Tudo depende da “narrativa” que foi desenvolvida.

Recentemente, mesmo diante das inúmeras acusações e constatações de órgãos internacionais com respeito às comprovadas fraudes eleitorais, ao autoritarismo e à fragilidade da democracia na Venezuela, o presidente do Brasil, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva, declarou diante da imprensa falando ao presidente daquele país:

“Se eu quiser vencer uma batalha, eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo. Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo”, disse Lula se dirigindo a Maduro. […] “É preciso que você construa a sua narrativa e eu acho que, por tudo que conversamos, a sua narrativa vai ser infinitamente melhor do que a que eles têm contado contra você”, declarou Lula.[3]

Repare que o uso de “narrativa” nesse discurso não tem nenhum compromisso com a realidade, passando a ser unicamente uma arma a ser construída visando “destruir” um inimigo. Assim, não há qualquer menção ou indicação de compromisso com a realidade. Assim como na história da feiticeira, a argumentação se torna apenas um discurso manipulativo, no qual o convencimento dos ouvintes tem precedência sobre os fatos.

Deixe-me apresentar dois contrastes:

  1. Jesus afirma em João 14.6: “Jesus respondeu: ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim’”. Se entendermos essas palavras apenas como um argumento para convencer outros, sem compromisso com a realidade, então todo o evangelho está perdido.
  2. Paulo afirma em 2Coríntios 4.2b: “Ao contrário, mediante a clara exposição da verdade, recomendamo-nos à consciência de todos, diante de Deus”. O apóstolo não só faz uma “clara exposição da verdade”, não de uma narrativa, mas se submete ao julgamento de todos diante de Deus.

A grande maioria de nós nunca teve ou terá de enfrentar uma feiticeira, mas enfrentamos corriqueiramente argumentações questionando e negando a verdade mais básica em prol de um ponto de vista, uma narrativa que interessa àquele que fala. Minha oração é que você e eu estejamos sempre prontos para oferecer uma resposta acerca da esperança que temos (1Pedro 3.5) e que tenhamos, na Palavra, um referencial absoluto ao enfrentar as feiticeiras deste mundo.

Notas

  1. C. S. Lewis, As Crônicas de Nárnia: Com ilustrações colorizadas à mão pela artista Pauline Baynes, trad. Paulo Mendes Campos e Silêda Steuernagel (São Paulo: Martins Fontes, 2002), p. 431.
  2. Ibid., p. 431-432.
  3. Lucas Schroedner, “Lula diz que Venezuela é ‘vítima de narrativa de antidemocracia e autoritarismo’”, CNN Brasil, 29 maio 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/lula-diz-que-venezuela-e-vitima-de-narrativa-de-antidemocracia-e-autoritarismo/.

Autor

  • Daniel Lima (D.Min., Fuller Theological Seminary) serviu como pastor em igrejas locais por mais de 25 anos. Também formado em psicologia com mestrado em educação cristã, Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida (SBPV) por cinco anos. É autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem quatro filhos, dois netos e vive no Rio Grande do Sul desde 1995. Ele estará presente no 26º Congresso Internacional Sobre a Palavra Profética, organizado pela Chamada.

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