Como devemos entender a revelação bíblica sobre o futuro dos céus e da terra? Eles serão renovados ou recriados?
Muitos escritores das eras patrística, medieval e reformada propagaram uma visão dos novos céus e nova terra como uma renovação cósmica após o fogo purificador em vez de uma recriação cósmica ex nihilo após um holocausto aniquilador. Tenho mostrado que essa leitura não apenas é permitida por uma cuidadosa exegese dos textos relevantes, como também apresenta um retrato mais convincente da leitura canônica de Isaías, passando por Paulo e Pedro, até o livro de Apocalipse.[1] Ela também representa uma leitura dos textos mais consistente com os temas redentores da Escritura e uma ênfase ortodoxa sobre a purificação e a restauração da criação, em lugar da gnóstica noção de aniquilação absoluta de uma criação irresgatável que é má por si mesma. Além disso, é consistente com as expectativas tanto de judeus quanto de cristãos no século I. Göran Lennartsson observa: “Os judeus não viam o futuro como o fim da história humana; antes, como o começo da restauração. Nessa restauração, Israel é uma parte e possui um papel a desempenhar, que, por fim, resultará na plena restauração da natureza e do universo. Nesse processo, quando as promessas da aliança a Israel forem cumpridas, partes das futuras bênçãos e da felicidade já foram experienciadas. Mas o cumprimento principal, quando a era messiânica romper, é uma intervenção direta de Deus com dimensões cósmicas na criação de um novo paraíso.”[2]
Os defensores clássicos da renovação têm insistido que o plano divino não é se render à obra destrutiva de Satanás, mas reverter a degeneração da criação pela ressurreição e restauração.[3] Assim como o nosso corpo humano foi redimido e será ressuscitado e glorificado, também o mundo físico será redimido, restaurado e glorificado no futuro retorno e reinado de Cristo (Romanos 8.18-25).[4] Comodiano, o poeta cristão latino do século III, escreveu lindamente: “Aquele que fez o céu, e a terra, e os mares salgados, decretou nos devolver a nós mesmos, em uma era dourada” (Comodiano, Instructiones 29 [ANF 4:208]). Ainda, no século II, Teófilo de Antioquia antecipou uma restauração do paraíso na terra e um retorno da humanidade a esse estado do Éden, melhorado pela ressurreição e pela imortalidade, que ocorrerá “após a ressurreição e o julgamento” (Autól. 2.26).

De acordo com essa expectativa dos primeiros pais, há uma conexão direta entre o paraíso edênico de Adão e Eva, o paraíso supraterrestre dos santos falecidos e o futuro paraíso terreno do reino milenar, durante o qual a criação será progressivamente renovada. Em nossa discussão do conceito bíblico do reino de Deus, já vimos que, após sua criação, Adão e Eva foram colocados no paraíso que Deus plantou e que era diferente do resto do mundo em razão da sua qualidade superior (veja caps. 2 e 4). Joachim Jeremias observa:
A esperança de um tempo futuro de felicidade, que é normalmente atestado no AT, pode ser rastreada bem antes do exílio. A representação dessa era usa motivos paradisíacos. O tempo final é como o primeiro. […] O lugar do paraíso reaberto é, quase sem exceção, a terra, ou a nova Jerusalém. Os seus dons mais importantes são os frutos da árvore da vida, a água e o pão da vida, o banquete do tempo de salvação e de comunhão com Deus. A crença na ressurreição assegurava que todos os justos, mesmo aqueles que estavam mortos, teriam uma participação no paraíso reaberto.[5]
No texto apócrifo de 2Enoque (ou O livro dos segredos de Enoque), composto entre 30 d.C. e 70 d.C., o autor descreve a jornada fantástica e especulativa de Enoque pelos vários níveis ou câmaras do reino celestial.[6] O texto descreve em vívidos detalhes – traçando um paralelo em relação ao relato de Gênesis 1 – a criação dos céus, da terra e de todas as coisas neles (2En. 23–29). Conforme essa releitura, quando Deus plantou o paraíso, no terceiro dia, ele “criou renovação” (30.1).[7] Essa renovação parece estar em contraste com a queda de Satanás, que o texto informa ter ocorrido no dia anterior. No sexto dia, Deus criou Adão e Eva e os colocou como guardiães e governantes da terra; mas, por causa da sedução satânica, eles ficaram apenas cinco horas e meia no paraíso (2En. 30.8–32.2). Com base nesse texto, então, vemos uma teologia especulativa do século I, na qual o paraíso, plantado na terra no terceiro dia da criação, fora projetado para ser não apenas o meio de acesso ao reino celestial, como também a fonte de renovação do mundo, em contraste com o mal que havia entrado com a queda de Satanás e de seus anjos.
Já vimos, no capítulo 4, que os primeiros cristãos acreditavam “que o paraíso ainda existia como um lugar no qual o justo aguardava a ressurreição e o juízo final”.[8] Isto é, o histórico paraíso terreno havia sido levado ao reino celestial após a queda de Adão e Eva.[9] Novamente, o texto de 2Enoque fornece uma janela para a compreensão judaica do século I quanto ao destino do paraíso, pois, quando Enoque é conduzido ao terceiro céu, ele entra no paraíso (8.2). Nesse paraíso do terceiro céu, está a árvore da vida “mais adornada do que qualquer coisa que existe” (8.3). Enoque também descreve o paraíso como “entre corruptibilidade e incorruptibilidade” – isto é, tanto físico quanto espiritual, tanto mortal quanto imortal (8.5). Quando Enoque comenta sobre a doçura do paraíso, os anjos respondem: “Este lugar, ó Enoque, é preparado para os justos […] para herança eterna” (9.1-2).
O Que os Pais da Igreja Falaram Sobre o Futuro
Uma defesa da escatologia do século II para a igreja do século XXI, apresentando a visão futurista e pré-milenarista de Ireneu de Lião e outros pais da igreja e suas implicações para a nossa vida no presente e no futuro.
Ainda nesse texto, após o relato da criação do mundo, dos anjos, do paraíso, da humanidade e da queda (2En. 20-32), Deus revela a Enoque que os dias da criação também antecipam períodos de mil anos, com o oitavo período representando “um tempo incontável, infinito, não medido por anos, meses, semanas, dias ou horas”; em outras palavras, a eternidade (33.1). Na conclusão da pregação de Enoque, ele informa que está prestes a ser levado para o céu “para a suprema Jerusalém, para a minha eterna herança” (55.2; cf. 1En. 60.8; Jub. 4.23).
Para esse mesmo paraíso os santos justos são levados quando partem deste mundo. Ireneu de Lião escreve: “E os presbíteros, discípulos dos apóstolos, dizem que foi para lá que foram levados os que foram transferidos – com efeito, é para os justos que possuem o Espírito que foi preparado o paraíso, para onde também foi levado o apóstolo Paulo e onde ele ouviu aquelas palavras que para nós agora são indizíveis – e é aí que ficarão até a consumação [de todas as coisas], como um prelúdio à imortalidade” (Her. 5.5.1). Ireneu diz que Elias foi levado “na sua carne” e que aqueles trasladados ao paraíso continuam, presentemente, a viver para “prefigurar a duração futura dos dias” (5.5.2); ou seja, o traslado deles ao paraíso é um tipo profético da condução escatológica ao paraíso dos santos no futuro.
O paraíso retornará à terra com a vinda de Cristo, e seus limites encherão a terra e a transformarão.
O que será desse paraíso preservado no reino celestial? O paraíso retornará à terra com a vinda de Cristo, e seus limites encherão a terra e a transformarão. Esse processo de edenificação – ou transformação do mundo para se tornar como o jardim do Éden – é o que queremos afirmar com a renovação do céu e da terra, resultando naquilo que é chamado de “novos céus e nova terra”. Durante o reino messiânico milenar vindouro, este mundo será temporariamente caracterizado por ambas as condições ao mesmo tempo – as velhas e as novas –, mas, estritamente falando, elas não ocuparão o mesmo espaço. Todas as coisas dentro dos limites desse paraíso terrestre em contínua expansão podem ser consideradas como “os novos céus e a nova terra”; tudo fora das fronteiras desse paraíso é a antiga criação madura para a renovação.
O paraíso de Gênesis 2, o paraíso no terceiro céu e o paraíso da futura era de restauração não constituem três realidades separadas; são uma única realidade. Jeremias escreve: “Que não temos três entidades distintas no paraíso dos períodos inicial, final e intermediário, mas um único e o mesmo jardim de Deus, pode ser visto indubitavelmente tanto na terminologia quanto no conteúdo das declarações relevantes. […] Com respeito ao conteúdo, a identidade é provada [especialmente] pela menção comum da árvore da vida em declarações sobre o paraíso intermediário e escatológico”.[10]
Isaías 51.3 olha à frente, para um tempo de restauração em Sião, quando a terra será como o Éden e como o jardim do Senhor. A Septuaginta desse versículo usa a palavra παράδεισος. Isso corresponde à era messiânica ou reino vindouro, que Isaías denomina “novos céus e nova terra” (Is 65.17). De acordo com Ireneu, os “discípulos dos apóstolos” ensinaram que, no futuro, os salvos experimentarão habitações diferentes, dependendo do grau de sua fidelidade nesta vida (Her. 5.36.1-2). Durante o futuro reino, os santos crescerão em sua imortalidade, avançando rumo à presença do Pai – isso é conhecido como “a visão beatífica”. Assim, durante o reino de Cristo sobre a terra, “os que são salvos” vão “avançar degraus” (Her. 5.36.2) – crescerão em sua imortalidade pelo Espírito, por meio do Filho e para o Pai. O reino milenar de Cristo como uma “edenificação” do mundo – paraíso desencadeado sobre a terra – representa o meio pelo qual tanto os santos ressurretos quanto os que estão “ainda na carne” avançam em direção à visão beatífica do Pai e sua morada nos céus e terra renovados.
Notas
- Veja H. A. Ironside, Lectures on the Book of Revelation (Nova York: Loizeaux Brothers, 1930), p. 350-352. Ele observa que Apocalipse 21.1 “nos faz lembrar da profecia de Isaías” e diz: “A essas promessas é que Paulo se refere em sua segunda epístola” (p. 351). Ironside aplica todas essas passagens ao milênio (p. 350).
- Göran Lennartsson, Refreshing & Restoration: Two Eschatological Motifs in Acts 3:19-21 (Lund, SE: Lund University Center for Theology and Religious Studies, 2007), p. 163.
- Veja R. C. Sproul, que apela para o plano geral de redenção divino: “Deus não tem o desígnio de aniquilar este presente mundo. Seu plano é redimi-lo” (1-2 Peter, St. Andrew’s Expositional Commentary [Wheaton, IL: Crossway, 2011], p. 285).
- G. B. Caird, The Revelation of Saint John, BNTC (Londres: Black 1966), p. 265-266.
- Joachim Jeremias, “Παράδεισος”, Theological Dictionary of the New Testament, ed. Gerhard Kittel, Geoffrey W. Bromiley e Gerhard Friedrich, vol. 5 (Grand Rapids: Eerdmans, 1967), p. 767.
- Isso não deve ser confundido com a descrição do paraíso em 1Enoque. Sobre isso, veja Eibert J. C. Tigchelaar, “Eden and Paradise: The Garden Motif in Some Early Jewish Texts (1 Enoch and Other Texts Found at Qumran)”, Paradise Interpreted: Representations of Biblical Paradise in Judaism and Christianity, ed. Gerard P. Luttikhuizen (Leiden: Brill, 1999), p. 38-49.
- Todas as citações de 2Enoque baseiam-se na tradução do texto eslavo em Henry Charles, ed., Pseudepigrapha of the Old Testament, vol. 2 (Oxford: Clarendon, 1913).
- Jean Delumeau, History of Paradise: The Garden of Eden in Myth and Tradition, trad. Matthew O’Connell (Nova York: Continuum, 1995), p. 23.
- Jeremias, “Παράδεισος”, p. 767-768.
- Ibid., p. 768.
Este artigo foi extraído e adaptado do livro O Que os Pais da Igreja Falaram Sobre o Futuro, escrito por Michael J. Svigel.
Autor
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Michael J. Svigel (Th.M., Ph.D., Dallas Theological Seminary) é professor de teologia sistemática e teologia histórica no Dallas Theological Seminary. Sua paixão por uma teologia e vida cristocêntricas é acompanhada por humor, música e escrita. Seus livros e artigos abrangem desde estudos crítico-textuais até ficção juvenil. Ele e sua esposa, Stephanie, têm três filhos: Sophie, Lucas e Nathan.
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