Deus Nunca Quis que Israel Tivesse um Rei?

Quando lemos o relato do pedido de Israel por um rei em 1Samuel 8–12, podemos pensar que Deus nunca quis que a nação tivesse um rei. Isso é, de fato, verdade? Ou os planos de Deus para a salvação da humanidade contavam com um rei futuro?

O ensino lendário sobre Israel ter um rei (1Samuel 8−12)

O fato de que Israel era uma teocracia significava que somente Deus deveria governar sobre o seu povo e que os israelitas não deveriam ter um rei humano como as outras nações. Gideão recusou o pedido do povo de Israel para ser o rei deles, lembrando-os de que Deus era o seu rei (Juízes 8.22-23). O Senhor ficou irado com o povo quando este pediu por um rei nos dias de Samuel, porque esse pedido refletia que eles o tinham rejeitado como seu governante (1Samuel 8.7; 10.19). Deus permitiu que Israel tivesse um rei apenas como uma concessão ao seu pedido pecaminoso. As avaliações negativas da monarquia encontradas em 1Samuel 8–12 refletem por que Deus se opunha a Israel ter um rei (veja 1Samuel 8.6-18; 10.17-19; 12.16-22).

Refutando o ensino lendário

O argumento a ser desenvolvido aqui é que a monarquia fazia parte do projeto e do plano de Deus para Israel e que o motivo da ira de Deus quando o povo pede um rei em 1Samuel 8 não é o pedido em si, mas as razões por trás dele. Uma indicação de que a monarquia humana não estava em conflito com o governo teocrático do Senhor sobre Israel era o fato de que o reinado compartilhado divino e humano fazia parte do projeto de Deus para a humanidade desde o início. Deus criou os seres humanos à sua imagem e lhes deu domínio sobre a terra e todas as outras criaturas (Gênesis 1.26-28). A palavra “imagem” (tselem) com frequência se refere a uma estátua, e a metáfora transmite a ideia de que Deus colocou os seres humanos como pequenas estátuas de si mesmo para implementar seu governo soberano sobre a terra, fazendo a sua obra e refletindo o seu caráter.[1] No Egito e em outras culturas, os reis eram vistos como a “imagem de Deus”, mas o Antigo Testamento democratiza esse conceito, ao afirmar que todos os seres humanos refletem a imagem real de Deus. Os reis muitas vezes colocavam estátuas de si mesmos em seus domínios, como uma expressão e lembrete de sua soberania, e é exatamente isso o que Deus fez com os seres humanos. O papel da humanidade era servir como vice-regente de Deus. No final, Deus acabaria por usar os reis de Israel (por meio da linhagem de Davi) para restaurar o domínio de toda a humanidade.

Promessas de um rei para Israel e as regras para a realeza

Deus havia prometido especificamente que reis viriam da linhagem de Abraão e Jacó (Gn 17.6,16; 35.11). Quando Jacó abençoou seus filhos, ele prometeu domínio a Judá e seus descendentes (Gênesis 49.10-11), antecipando o reino futuro da casa de Davi. Quando o profeta pagão Balaão foi contratado para amaldiçoar Israel antes de sua entrada na Terra Prometida, ele, em vez disso, prometeu grandes bênçãos para o futuro de Israel, incluindo um governante que surgiria como uma estrela (Números 24.17-19). Em um estágio muito inicial da história da redenção, Deus revelou seus planos de abençoar Israel com governantes poderosos.

As regras sobre a realeza estabelecidas em Deuteronômio 17.14-20 refletem Deus permitindo que Israel tivesse um rei e que esse arranjo era esperado e previsto quando Israel entrasse na terra. Eugene Merrill observa que “a monarquia era o modo predominante de governo no final da Idade do Bronze por todo o mundo mediterrâneo oriental. É inconcebível que Israel adotasse sozinho algum outro sistema, mesmo como uma teocracia”.[2] Ao mesmo tempo, o status do rei em Deuteronômio é diminuído pela forma com que Deus fornece ou instrui Israel a nomear outros líderes (juízes, 16.18; sacerdotes, 18.5; e profetas, 18.15), ao passo que é o povo que dirá: “Poremos sobre nós um rei…” (17.14). Esse contraste, de certa forma, torna o rei “uma parte não essencial do quadro”.[3]

Houve um vácuo de liderança em Israel após a morte de Josué, e a história da liderança fracassada dos juízes e a declaração recorrente do epílogo de Juízes de que “não havia rei em Israel” (17.6; 18.1; 19.1; 21.25) reflete a intenção final de Deus de que Israel tivesse um rei. No livro de Rute, Deus age para corrigir essa situação, preparando Israel para ter um rei (veja Rute 4.13-22). O problema em Juízes, contudo, não é simplesmente a falta de monarquia, mas a ausência de um líder focado na Torá, conforme previsto em Deuteronômio 17.14-20. Os versículos 18-20 estipulam que o rei deve escrever sua própria cópia da Lei, para que a leia e governe de acordo com ela durante toda a sua vida. Tanto os líderes quanto o povo deixam de seguir o Senhor e seus mandamentos. A monarquia por si só não resolveria o problema, mas um rei como aquele previsto em Deuteronômio 17 seria um passo na direção certa.

O problema com os pedidos de Israel por um rei

O problema com os pedidos iniciais de Israel por um rei é que estes refletem que os israelitas desejavam o tipo errado de rei, ou queriam um rei pelos motivos errados. Em Juízes 8.22-23, o povo vem a Gideão e pede que ele e seus filhos sejam seus reis, pois Gideão os “salvara/libertara” (yasha‘) dos midianitas. O povo não reconhece que fora o Senhor quem os libertara, usando Gideão como seu instrumento humano. O Senhor chamara Gideão para “salvar/libertar” (yasha‘) Israel (Juízes 6.14) e lembrara o temeroso juiz que sua presença e poder o capacitariam a cumprir sua comissão (v. 15-16). A fonte da força de Gideão seria o Espírito do Senhor vindo sobre ele (v. 34). A redução do exército de Gideão de milhares para trezentos homens demonstrou que somente o Senhor era a fonte da vitória (Juízes 7.2,7). O Senhor era aquele que tinha “entreg[ue]” os midianitas a Gideão (Juízes 7.2,9,14). Ao pedir um rei, o povo tinha ignorado a verdadeira fonte de sua vitória.

O problema com os pedidos iniciais de Israel por um rei é que estes refletem que os israelitas desejavam o tipo errado de rei, ou queriam um rei pelos motivos errados.

A resposta de Gideão ao povo em Juízes 8.23 é frequentemente apresentada como prova de que o Antigo Testamento se opõe à realeza humana, mas o juiz, em vez disso, reflete seus próprios motivos contraditórios e sua incapacidade de entender corretamente como sua liderança se relaciona com a realeza do Senhor. Inicialmente, Gideão parece refletir humildade e respeito ao recusar-se a invadir o reinado do Senhor, mas depois se vira e age como os reis despóticos das outras nações que os israelitas não deveriam imitar.[4] O juiz causa um problema ao fazer uma estola sacerdotal de ouro, um objeto idólatra usado para obter oráculos (Juízes 8.27; cp. 1Samuel 14.3; 23.9; 30.7).[5] Gideão também acumula várias esposas e uma concubina, violando Deuteronômio 17 (Juízes 8.30-31), e tem um filho chamado Abimeleque (“meu pai é rei”; Juízes 9.1). Todas essas ações minam a credibilidade do protesto de Gideão de que ele não deseja ser o rei de Israel.[6]

As aspirações reais mais sutis de Gideão assumem proporções patológicas em seu filho Abimeleque, que assassina seus setenta irmãos antes de tornar-se o primeiro ser humano a reivindicar o título de rei em Israel (Juízes 9). A fábula de Jotão, retratando Abimeleque como um espinheiro sem valor, não é uma polêmica contra a monarquia, mas sim uma acusação da falta de caráter de Abimeleque e dos homens de Siquém por terem recorrido a ele para liderar.[7]

A resposta do Senhor ao pedido de Israel por um rei em 1Samuel 8.6-9 é que o seu povo o havia rejeitado como rei e está, mais uma vez, se rebelando contra ele. Embora essa afirmação pareça indicar que Deus se opunha inequivocamente à instituição da monarquia, o verdadeiro problema é a motivação por trás do pedido de Israel. O motivo para o seu pedido era que eles desejavam “se[r] como todas as outras nações”, tendo um governante humano que sairia e lutaria as suas batalhas por eles (1Samuel 8.20). David Firth explica que o pedido por um rei era “fundamentalmente uma nova idolatria, uma tentativa de estabelecer um modelo de governo que substituísse a autoridade de Javé com a de um rei”.[8] A forma pela qual o Senhor libertou Israel dos filisteus em 1Samuel 7 em resposta à intercessão de Samuel e as maneiras milagrosas com que o Senhor lutou por Israel ao longo de sua história demonstraram que o Senhor era mais do que capaz de libertar os israelitas de seus inimigos, de um jeito que nenhum governante humano poderia fazer. No entanto, o povo estava mais inclinado a confiar no libertador humano do que no Senhor como a fonte de sua segurança. Apesar do comentário negativo do Senhor sobre o pedido do povo, 1Samuel 2.10,34-35 indica que o Senhor já estava se preparando para dar um rei a Israel.[9]

Lendas Urbanas do Antigo Testamento

por David A. Croteau e Gary E. Yates

Este livro analisa 40 passagens mal interpretadas no Antigo Testamento, apresentando a abordagem correta e fornecendo técnicas de interpretação confiáveis para serem aplicadas no restante do Antigo Testamento.

Na história da nomeação de Saul como o primeiro rei de Israel, há considerações negativas (1Samuel 8.4-22; 10.17-27; 12.1-25) e positivas (9.1–10.16; 11.1-15) sobre as perspectivas da monarquia em Israel. O texto reflete as ambiguidades que ter um rei implicaria para Israel. O rei lutaria as suas batalhas, mas também confiscaria as suas terras, levaria seus filhos e filhas para o seu próprio serviço e imporia pesados impostos sobre eles.[10] Ambiguidades semelhantes estão presentes na seleção de Saul como rei. O Senhor atende ao pedido do povo e lhes dá um rei de estatura física impressionante, como eles desejavam (1Samuel 9.2), mas Saul acaba não sendo o homem certo para o cargo. Ele é relutante em ir para a batalha e não consegue libertar Israel dos filisteus. No final, seu governo é dissolvido em razão de sua fixação paranoica com seu rival Davi.

A bênção de Deus da monarquia em Israel e a esperança para o futuro

Apesar das circunstâncias negativas que cercaram o surgimento da realeza em Israel, a monarquia foi uma dádiva de Deus em vez de uma mera concessão à pecaminosidade teimosa dos israelitas. O Senhor substituiria Saul, o rei que o povo desejava, por Davi, o rei que ele desejava para Israel (1Samuel 13.14). O Senhor entraria graciosamente em aliança com a linhagem de Davi, que estabeleceria os reis davídicos como filhos adotivos de Deus e prometeria estabelecer o trono de Davi para sempre (2Samuel 7.13-14). Apesar da persistente infidelidade da maioria dos filhos de Davi, o Senhor manteve acesa a lâmpada da dinastia davídica (veja 1Reis 15.4; 2Reis 8.19).

O governo de Jesus como o Messias davídico acabará por restaurar completamente a imagem de Deus e o domínio da humanidade redimida.

No Saltério, os salmos reais celebram as bênçãos do rei davídico como o governante ungido de Deus e refletem a esperança contínua do cumprimento final das promessas da aliança de Deus com Davi, mesmo quando não havia rei no trono (veja Salmos 2; 45; 72; 110; 132; 144). Embora os profetas de Israel e Judá tenham denunciado o comportamento pecaminoso dos reis de sua época, eles antecipavam um tempo em que o Senhor cumpriria suas promessas da aliança feitas a Davi, levantando o rei ideal de justiça e retidão (veja Isaías 9.2-7; 11.1-9; 32.1; Jeremias 23.5-6; 30.8-9; 33.15-16; Ezequiel 34.23-24; 37.24-25; Oseias 3.5; Amós 9.11-12; Miqueias 5.2-5; Zacarias 9.9-10).

Aplicação

O governo de Jesus como o Messias davídico acabará por restaurar completamente a imagem de Deus e o domínio da humanidade redimida (cp. Salmos 8.3-8 com Hebreus 2.5-9; Daniel 7.13-14,26; Mateus 19.28; Apocalipse 2.26-27). O desenrolar da história da salvação reflete tanto a sabedoria quanto a graça de Deus. Até mesmo a história negativa de como Israel obteve seu primeiro rei se torna parte de como Deus acabaria restaurando a humanidade ao seu lugar de direito como vice-regente. Atualmente, Jesus governa como o Filho de Davi à direita do Pai no céu, e, por meio de Jesus, o povo de Deus participará do domínio do reino eterno de Deus.

Notas

  1. Veja Peter J. Gentry e Stephen J. Wellum, Kingdom through Covenant: A Biblical-Theological Understanding of the Covenants (Wheaton, IL: Crossway, 2012), p. 191-202.
  2. Eugene H. Merrill, Deuteronomy, New American Commentary (Nashville: Broadman & Holman, 1994), p. 265.
  3. J. G. McConville, “Deuteronomy, Book of”, IVP Dictionary of the Old Testament Pentateuch, ed. T. Desmond Alexander e David W. Baker (Downers Grove, IL: Inter-Varsity Press, 2003), p. 187.
  4. Veja Bruce K. Waltke, com Charles Yu, An Old Testament Theology: An Exegetical, Canonical, and Thematic Approach (Grand Rapids: Zondervan, 2007), p. 683-684.
  5. Robert B. Chisholm Jr., A Commentary on Judges and Ruth, Kregel Exegetical Library (Grand Rapids: Kregel, 2013), p. 291-292.
  6. Waltke, Old Testament Theology, p. 684.
  7. Ibid., p. 684-685.
  8. David G. Firth, 1 & 2 Samuel, Apollos Old Testament Commentary (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2009), p. 116.
  9. Ibid., p. 111.
  10. Para saber mais a respeito das tensões entre a monarquia e o igualitarismo socioeconômico refletido na lei mosaica, veja Christopher J. H. Wright, Old Testament Ethics for the People of God (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2004), p. 54-61, 89-99.

Este artigo foi adaptado do livro Lendas Urbanas do Antigo Testamento, escrito David A. Croteau e Gary E. Yates.

Autores

  • Gary E. Yates (Ph.D., Dallas Theological Seminary) é professor de Antigo Testamento na Liberty University desde 2003. Suas áreas de interesse são os profetas veterotestamentários, o livro de Salmos, o hebraico bíblico e a teologia bíblica. Gary continua envolvido no ensino e na pregação na igreja local. Casado com Marilyn, tem três filhos.

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  • David A. Croteau (Ph.D., Southeastern Baptist Theological Seminary) é deão do seminário e da escola de ministério da Columbia International University desde 2021. Ele leciona cursos de Novo Testamento e grego e é membro da Evangelical Theological Society. Dr. Croteau já ensinou em vários países ao redor do mundo.

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