A escolha de Israel por Deus é uma pedra de tropeço para muitos crentes e descrentes. Contudo, qual é o propósito de Deus por trás disso? E a eleição de Israel permaence relevante?
Muitos leitores cristãos da Bíblia têm dificuldade com a ideia de “povo escolhido”. A expressão remete a arrogância, delimitação e exclusividade. Já no século 19, ao mesmo tempo em que se espalhava na Europa o nacionalismo alemão, francês e britânico, muitos intérpretes da Bíblia falavam de forma muito negativa sobre o nacionalismo judeu. A fé de Israel era descrita como uma “religião nacional”, e o Deus do Antigo Testamento, um “Deus nacional”. Em seguida, enfatizavam que Jesus tinha vindo para acabar com tudo isso. Com a vinda de Jesus, a história do povo escolhido havia se encerrado, pois a partir dali todos os povos eram eleitos. Jesus anunciava o “Pai celestial”, não mais o Deus nacional dos judeus do Antigo Testamento. Esse pensamento se mantém até hoje em muitos corações e mentes: já ouvi inúmeras pregações em que se disse que no Antigo Testamento a salvação de Deus se limitava ao povo de Israel – desde Jesus, porém, estava aberta a todos.
Mas, quando se olha com atenção, isso não pode ser dito nem sobre o Antigo nem sobre o Novo Testamentos. Em primeiro lugar, já na eleição de Abraão – e depois ao longo de todo o Antigo Testamento – fica claro: por meio da eleição de Israel, bênção e salvação chegarão a todos os povos. Israel foi escolhido para ser bênção para todas as nações. Em segundo lugar, uma análise dos Evangelhos mostra que também Jesus – assim como o Antigo Testamento – se concentrou principalmente no povo de Israel (Mateus 10.5-6; 15.24; Marcos 7.27). Como já tinha acontecido no Antigo Testamento, as histórias em que gentios tinham algum papel importante eram raras exceções (Mateus 8.5-13; 15.21-28; Marcos 5.1-20). Portanto, o Antigo Testamento na realidade não é tão exclusivo quanto se afirma muitas vezes. E Jesus não foi tão inclusivo quanto alguns gostam de pensar. Como combinar as duas coisas?

Eleição: o princípio do “um por todos”
O disseminado clichê do judaísmo exclusivo deriva de um entendimento errado de “escolhido”. Isso fica claro assim que se substitui a palavra “escolha” por “eleição”: todo mundo entende imediatamente que a “eleição” em uma democracia, ao contrário de ser um recurso que exclui alguém, é uma forma de incluir todo mundo. Na escola, o representante de classe não é eleito para excluir o restante dos alunos, mas para representar seus colegas e dar voz a eles. O presidente não é eleito para excluir os demais cidadãos do país do bem-estar público, mas justamente para cuidar do bem-estar de todos. Assim, o caminho para que todos tenham acesso ao melhor muitas vezes passa pela eleição de um representante ou porta-voz especial.
Desde o princípio, Deus busca o bem e a salvação de toda a humanidade. Todavia, a eleição de Israel é a forma especial que ele definiu para trazer essa salvação ao mundo.
A eleição de Israel é entendida de forma semelhante na Bíblia. Desde o princípio, Deus busca o bem e a salvação de toda a humanidade. Isso fica claro nos primeiros capítulos da Bíblia. Todavia, a eleição de Israel é a forma especial que ele definiu para trazer essa salvação ao mundo. Ela não é simplesmente derramada do céu com um regador sobre todas as pessoas. Afinal, não se trata aqui de um princípio genérico, mas de um relacionamento pessoal. Um relacionamento, porém, se forma por meio de pessoas, não de princípios. Por isso, Deus começa com uma pessoa: Abraão e sua família. Por meio dele e de seus descendentes, todas as nações deverão receber bênção e salvação. Abraão ouve isso desde o começo, de forma bem expressa:
“Farei de você uma grande nação, e o abençoarei, e engrandecerei o seu nome. Seja uma bênção! Abençoarei aqueles que o abençoarem e amaldiçoarei aquele que o amaldiçoar. Em você serão benditas todas as famílias da terra.” (Gênesis 12.2-3)
Como um tema musical, essa missão de ser bênção para todas as nações permeia todo o Antigo Testamento. A genealogia de Jesus mostra isso ao expressamente citar duas mulheres, Raabe e Rute, como antepassadas de Jesus: ambas pertenciam a um povo estrangeiro e inimigo, mas então se tornaram integrantes da bênção de Deus ao se filiarem a Israel. Até hoje lê-se o livro de Rute durante a festa judaica de Pentecostes (Shavuot): ele lembra que cada ser humano é convidado a participar da aliança de Deus. E que cada pessoa pode encontrar acesso à bênção e à salvação ao se ligar ao povo de Israel e seu Deus. O que vale para o indivíduo na verdade vale para todos:
“E [o Senhor] me disse: ‘Você é o meu servo, você é Israel, por meio de quem hei de ser glorificado… Para você, é muito pouco ser o meu servo para restaurar as tribos de Jacó e trazer de volta o remanescente de Israel. Farei também com que você seja uma luz para os gentios, para que você seja a minha salvação até os confins da terra’.” (Isaías 49.3,6)
“Pois não há outro Deus, além de mim, Deus justo e Salvador não há além de mim. Voltem-se para mim e sejam salvos, vocês, todos os confins da terra.” (Isaías 45.21-22)
Ou seja, qualquer pessoa pode participar. Por outro lado, cada um que se interessa por essa conversão é logo alertado para o fato de que a “eleição” não traz apenas vantagens. Muito pelo contrário, justamente na longa história de sofrimento e perseguição, a eleição sempre representou também um fardo a ser levado para Israel:
Nossos mestres ensinaram: quando alguém quer se converter ao judaísmo, dizemos a ele: “O que você espera? Você não sabe que neste mundo Israel será quebrado, oprimido e humilhado, e que passará por sofrimento?!”. Se ele então disser: “Sim, sei disso. E não sou digno”, então é imediatamente aceito. […] Mergulhamo-lo no batistério e, quando ele sai novamente, é considerado verdadeiro israelita em todos os sentidos.[1]
A eleição não se destina a incluir ou excluir alguém. Muito pelo contrário, o que importa é como Deus atua e age no mundo. Ele quer a todos, mas age sempre por meio de indivíduos.
Portanto, a eleição não se destina a incluir ou excluir alguém. Muito pelo contrário, o que importa é como Deus atua e age no mundo. Ele quer a todos, mas age sempre por meio de indivíduos. Sua boa vontade e seu domínio devem alcançar todas as nações – e isso acontece inicialmente por meio de um povo, a saber, o povo de Israel.
Jesus, o judeu, e os equívocos dos cristãos
Este livro leva o leitor a uma viagem pelo contexto judaico da vida e do ministério de Jesus, na qual muitas interpretações populares, espalhadas até mesmo nos púlpitos das igrejas, serão corrigidas, para que haja uma compreensão melhor do judeu Jesus.
E como fica o cristianismo? Será que é realmente menos exclusivo que o judaísmo? Muitos dos meus interlocutores judeus logo inverteriam a pergunta: afinal, no judaísmo a bênção para o mundo vem por meio de um povo inteiro – já no cristianismo, apenas por meio de um único homem. Mas a “exclusividade” só se faz presente quando é entendida não como convite, mas como marginalização. Contudo, isso não acontece nem com Jesus nem com o povo de Israel: Deus abençoa a todos – por meio de um. Por meio de Abraão. E por meio de seus descendentes, o povo de Israel. E então por meio de um descendente específico, Jesus. Um por todos. Todos por meio de um. É assim que Deus já agia no Antigo Testamento. E é assim que ele age no Novo Testamento.
Nota
- Talmude Babilônico, Yevamot 47a-47b.
Este artigo foi adaptado do livro Jesus, o judeu, e os equívocos dos cristãos, escrito por Guido Baltes.
Autor
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Guido Baltes (Dr. habil., Philipps-Universität Marburg) é pastor da Igreja Evangélica de Kurhessen-Waldeck, Alemanha. Entre 2003 e 2009, ele e sua esposa serviram no atendimento pastoral de um hospício joanino em Jerusalém. Baltes é professor de Novo Testamento na MBS Akademie desde 2009 e na Philipps-Universität Marburg desde 2019. Além da teologia, sua outra paixão é a música, e vive com sua esposa, Steffi, em Marburgo.
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