Como temos reagido diante de passagens da Bíblia que nos incomodam? Qual é a atitude correta que devemos ter quando lemos a Bíblia?
Em determinado momento de sua mensagem, certo pastor afirmou, indignado: “Eu não posso aceitar que o meu Deus condene alguém ao sofrimento eterno!”. A frase é impactante, inclusive porque nos leva a pensar quem é Deus e quem é discípulo nessa relação.
Infelizmente, já ouvi esse tipo de conversa muitas vezes. A pessoa lê um versículo com um princípio ou mandamento da parte de Deus e seu primeiro instinto argumentativo é mostrar como ele “não pode” querer dizer aquilo. Tomemos o exemplo de 1Coríntios 7.10-11:
“Aos casados, dou este mandamento, não eu, mas o Senhor: que a esposa não se separe do marido. No entanto, se ela o fizer, que permaneça sem se casar ou, então, que se reconcilie com o marido. Quanto ao marido, não se divorcie da sua mulher.”
Depois da leitura, a pessoa começa a contar uma história sobre certa mulher que foi maltratada, sofrendo abusos por parte do marido, que (pelo menos na história) era um completo mau-caráter. A pessoa então conclui que deve haver outra resposta, outra interpretação àquela passagem. A seguir, vários passos são dados para negar o sentido primário da passagem e encontrar seu “verdadeiro sentido”. Tais passos incluem descrever o contexto em que a passagem foi escrita, enquadrá-la a desvios ou preconceitos do autor e então apresentar uma versão alternativa.
Essa linha de argumentação parece razoável, mas parte de uma premissa distorcida. Se eu começar a pesquisar em busca de uma interpretação alternativa toda vez que ler um texto bíblico com o qual discordo, estarei negando a autoridade da Bíblia. Certamente devemos examinar, pesquisar e procurar entender contextos e até mesmo investigar explicações alternativas. O problema, no entanto, é a atitude com a qual nos debruçamos sobre o texto. Ou eu entendo que a passagem bíblica é palavra de Deus, com autoridade para confrontar minha vida (veja 2Timóteo 3.16-17), ou é um texto de apoio para o modo como conduzo minha própria vida.
Ou eu entendo que a passagem bíblica é palavra de Deus, com autoridade para confrontar minha vida, ou é um texto de apoio para o modo como conduzo minha própria vida.
Tive uma conversa muitos anos atrás com o famoso educador Paulo Freire. Quando apresentei-lhe minha compreensão do evangelho, ele me respondeu: “Ou Jesus é um companheiro meu na libertação dos oprimidos, ou não tenho interesse nele!”. Por um lado, foi um momento triste, pois ele não chegou a compreender que Jesus realmente veio para libertar os oprimidos (Lucas 4.18, citando Isaías 58.6), mas em um sentido muito mais amplo do que as opressões política e material. Por outro lado, ele foi muito honesto ao declarar que já tinha um projeto de vida e não estava disposto a abandoná-lo para seguir a Jesus (Mateus 16.24-26). Em outras palavras, o papel de Jesus em sua vida era meramente o de alguém que o ajudaria em seu próprio projeto de vida.

Se eu ler a Bíblia com essa mesma atitude, também me permitirei concordar ou discordar de passagens bíblicas que me incomodem. E, quando alguma me incomodar, passarei a procurar uma maneira de adequar ela à minha compreensão ou a descartarei como irrelevante.
Uma atitude radicalmente diferente é decidir dedicar a vida a Jesus e seguir sua vontade. A partir daí, quando eu me deparar com uma passagem que não faz sentido ou contraria meu modo de pensar, passarei a me dedicar a estudar e entender o que aquela passagem significa, assumindo de antemão que vou seguir e aplicar os conceitos ensinados. Com essa postura, aproximo-me da Palavra já em submissão, já disposto a me alinhar com a vontade de Deus, e não com o propósito de alinhar a vontade de Deus à minha. Essa abordagem é demonstrada na passagem de Hebreus 4.12-13:
“Pois a palavra de Deus é viva, eficaz e mais afiada que qualquer espada de dois gumes. Ela penetra a ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para julgar os pensamentos e as intenções do coração. Nada, em toda a criação, está oculto aos olhos de Deus. Tudo, porém, está descoberto e exposto diante dos olhos daquele a quem havemos de prestar contas.”
Repare que a Palavra não é descrita como algo confortável, algo que vai se amoldar aos meus desejos. Pelo contrário, ela é algo penetrante e cortante. Ela toca o profundo de nosso ser e seu propósito é discernir pensamentos e intenções. Repare que a Palavra é ativa, não passiva. Ou seja, não sou eu que julgo a Palavra, mas ela tem, por meio do Espírito Santo, o poder de avaliar os meus pensamentos e intenções.
A Palavra não é descrita como algo confortável, algo que vai se amoldar aos meus desejos. Pelo contrário, ela é algo penetrante e cortante.
O versículo 13 acompanha o mesmo pensamento. Nada permanece oculto, mas tudo está exposto aos olhos de Deus, a quem devemos prestar contas. Você percebe como essa descrição se opõe àquela da pessoa que examina o texto bíblico para ver se concorda ou se encontra uma interpretação “mais adequada”?
O pregador acima – e muitos outros hoje em dia – está mais preocupado em tornar a Bíblia agradável do que em ser confrontado por ela. Minha oração, primeiramente por mim, mas também por você, caro leitor, é que nosso coração esteja rendido ao nosso Senhor e pronto para aprender de sua Palavra, tanto o que nos agrada quanto o que nos confronta.
Autor
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Daniel Lima (D.Min., Fuller Theological Seminary) serviu como pastor em igrejas locais por mais de 25 anos. Também formado em psicologia com mestrado em educação cristã, Daniel foi diretor acadêmico do Seminário Bíblico Palavra da Vida (SBPV) por cinco anos. É autor, preletor e tem exercido um ministério na formação e mentoreamento de pastores. Casado com Ana Paula há mais de 30 anos, tem quatro filhos, dois netos e vive no Rio Grande do Sul desde 1995. Ele estará presente no 26º Congresso Internacional Sobre a Palavra Profética, organizado pela Chamada.
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