O Domínio do Humanismo Secular

Um grande desafio que atualmente contribui para a confusão religiosa no cristianismo ocidental é o humanismo secular. O que significa isso e por que o humanismo é algo negativo em sentido secular (mundano)?

A ameaça iminente ao cristianismo em meados do século 20 não foi percebida como invasão de outros sistemas religiosos, mas como a submissão do Ocidente “cristão” a um materialismo não religioso: o humanismo secular, cujo objetivo era aniquilar completamente a religião.

As raízes do humanismo secular

O que chamamos de humanismo secular começou como humanismo puro. No século 15, entendia-se o humanismo da Renascença como o novo nascimento da humanidade segundo o antigo modelo pagão grego de pensamento racional, bem resumido numa declaração de Protágoras, do século 5 a.C.: “O homem é a medida de todas as coisas”. Sem intenção, a Reforma forneceu ao humanismo uma arma crucial para a sua campanha contra a tradição: o direito do indivíduo cristão de investigar por conta própria, e à luz da Palavra de Deus como autoridade última, a fé e as práticas da Igreja Católica Romana (em si uma boa causa). Esse direito tornou-se para os humanistas um meio de substituir a Palavra de Deus pela razão humana autônoma.

No século 17, pensadores como Hobbes, Descartes e Locke começaram a tornar predominante essa noção humanista secularizada ao exigirem a autonomia intelectual do espírito humano diante de tradições religiosas ou da revelação divina. Embora o matemático francês René Descartes fosse uma pessoa profundamente religiosa, ele tentou comprovar a mera existência apenas com base na razão humana por meio da sua famosa declaração: “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”). É comum afirmar-se que Descartes tenha lançado a pedra fundamental do racionalismo continental dos séculos 17 e 18.

O grande respeito do humanismo pela inteligência e a racionalidade levou na cultura ocidental ao pensamento criativo e independente que possibilitou inúmeras realizações científicas e tecnológicas. Esse progresso proporcionou a base para conquistas tão espantosas como o pouso do homem na lua. Por outro lado, aos poucos o pensamento humano independente passou a ser considerado como única norma para toda a verdade, como a origem primeira de todo sentido e todo significado – uma unidade racionalista. Cada vez mais pessoas concluíram que uma dimensão espiritual não passaria de mito supersticioso e primitivo, que deveria ser descartado como ilusão irracional. A religião teria de ceder ao homem moderno.

Assim, o iluminismo, a era da razão, predominou no pensamento ocidental como grande oponente ao cristianismo aproximadamente do século 18 ao 20. Apenas as realizações humanas – não mais a fé em Deus, mas a própria razão – seriam o critério da verdade e nos salvariam. Um forte otimismo e respeito à capacidade humana de criar por si um mundo melhor invadiu e conquistou o Ocidente. A razão substituiria a primitiva superstição religiosa e criaria o futuro e glorioso reino humano sobre a terra.

Aos poucos o pensamento humano independente passou a ser considerado como única norma para toda a verdade, como a origem primeira de todo sentido e todo significado.

Essa visão humana otimista de uma religião humanista é vista com razão em conexão com a Revolução Francesa. Em 1789, os revolucionários parisienses erigiram no meio da catedral de Notre Dame em Paris, o centro do cristianismo católico europeu, um altar dedicado à deusa da razão.

Personalidades líderes intelectuais do humanismo secular

O filósofo e revolucionário Voltaire, do século 18, fez uma declaração assustadora sobre o cristianismo: “Ecrasez l’infâme” – literalmente “esmaguem a infame”. O que Voltaire tinha em mente na ocasião era a superstição, os dogmas, as instituições, a ética e a imagem humana do cristianismo. O lema de Voltaire tornou-se o grito de guerra do iluminismo do século 18, um grito dirigido contra o próprio cristianismo.

O humanismo ateu conquistou a elite intelectual da Europa. O imperador Napoleão perguntou a Pierre-Simon Laplace, um grande cientista francês que participou do desenvolvimento da astronomia matemática e da estatística, qual seria a posição de Deus em seu trabalho.

Consta que a resposta de Laplace teria sido: “Não preciso dessa hipótese”.

Muitos filósofos e importantes observadores da sociedade do século 19 previram a vitória definitiva do secularismo e o completo desaparecimento da religião:

1. Ludwig Feuerbach, um filósofo do século 19, chamou o cristianismo de ilusão e Deus de “uma gigantesca projeção humana” – no fundo, “um homem de grande porte”.

2. Charles Darwin desalojou a fé em Deus como Criador do ambiente científico por meio de uma outra variante do humanismo secular. Ele estabeleceu a teoria de que todos os seres vivos seriam provenientes de um ancestral comum por meio de um processo aleatório e impessoal de seleção natural causada por mudanças casuais. A maioria dos seus seguidores posteriores defendia a opinião de que a vida teria se originado na terra por mero acaso e que o homem seria “resultado de um processo natural sem objetivo, que não tinha a intenção de criá-lo”. Com isso, Darwin praticamente tornou Deus supérfluo e a criação (in cluindo a humanidade) um mecanismo puramente físico e autocriador, mas sem sentido.

3. Karl Marx rejeitou a religião como “ópio para o povo”. Marx enxergava a fé religiosa como sinal de uma sociedade organizada erradamente. Ele achava que a necessidade da fé desapareceria assim que a sociedade estivesse organizada racionalmente. Segundo Marx, “o homem é o ser máximo para o homem”.

4. Friedrich Nietzsche, um pensador alemão do século 19, considerava a vida como um fenômeno exclusivamente deste mundo e rejeitava a ideia de um mundo além. Ele levou a rejeição da verdade divina ao seu ápice lógico, chegando ao ponto de declarar que “Deus está morto”. Este tema ressurgiu na década de 1960 no pensamento ocidental e foi defendido por diversos líderes teológicos. No final do século 19, o ateísmo popular passou a influenciar a nova ciência da psicologia. Siegmund Freud escreveu O futuro de uma ilusão e se autodesignou como “judeu totalmente alheio de Deus”. Teria dito que “quanto mais os frutos do conhecimento se tornam acessíveis ao homem, tanto mais se dissemina o declínio da fé religiosa”. Como psicólogo, ele também argumentou que a religião (inclusive o judaísmo) seria uma “loucura das massas” ou uma “neurose coletiva”, na qual estaria praticamente ancorado o nosso anseio “infantil” por uma figura paterna onipotente protetora (mas também ameaçadora). Portanto, ele considerava a religiosidade como um estado seriamente patológico e grande empecilho para a saúde mental, do qual a sociedade futura certamente seria curada. A ênfase nessa ideia não cessou. Richard Dawkins, um dos novos ateus, definiu em 1976 a fé como “uma espécie de doença mental”, e continua a defender essa opinião.

Para muitos intelectuais do século 20 tornou-se óbvio que a religião acabaria por ceder à “verdade” do humanismo secular. Um exemplo disso é o escritor britânico Evelyn Waugh. Waugh cresceu no ambiente cultural britânico da alta sociedade e frequentou uma preparatory school [escola preparatória] para meninos, “baseada em sólidos princípios e fundamentado conhecimento, firmemente ancorados na fé cristã”. Com a idade de 17 anos, ele registrou o seguinte no seu diário: “Nestas últimas semanas deixei de ser cristão. Reconheci que ao menos nos últimos dois semestres tenho sido de todo ateu, exceto quanto à coragem de admitir isso para mim mesmo”. Waugh lembrou-se de que seus professores abordaram livros de teor corrosivo para a fé, “deixando por nossa conta encontrar nossas próprias soluções, tendo sido estimulados a não sermos ortodoxos”. Ele se lembrava de que a metade dos alunos de sua classe era de “agnósticos ou ateus confessantes”. Tudo isso aconteceu dentro de um sistema escolar supostamente cristão.

A declaração de Waugh é característica para um período de aproximadamente dois séculos, no qual o programa humanista secular teve imenso sucesso. A igreja também foi atingida com toda violência, e começou a reinterpretar a mensagem cristã de modo antissupranaturalista. No século 19, o secularismo fantasiado de cristão, o chamado liberalismo teológico, tornou-se um fator poderoso no cristianismo. Ele influenciou principalmente numerosos seminários, faculdades teológicas e outras instituições formadoras de teólogos, para assumirem o propósito de remanejar a fé cristã de tal modo que refletisse o espírito humanista secular da era moderna.

O liberalismo estava imbuído do desejo de redefinir o cristianismo segundo a percepção do homem moderno.

O liberalismo estava imbuído do desejo de redefinir o cristianismo segundo a percepção do homem moderno. Ele reinterpretou o evangelho como justiça social e enxergava Jesus apenas como exemplo e não como salvador divino-humano. A mensagem do Novo Testamento era muitas vezes descrita como uma versão antiga da teoria marxista, segundo a qual Jesus era um revolucionário similar a Che Guevara, que queria mudar as estruturas de poder sociais e econômicas no seu tempo.

Nos anos mais tardios da década de 1960, quando estudei teologia neotestamentária na Universidade de Harvard, a desmitologização era um tema popular. Tratava-se de transformar a antiga fé cristã em uma psicologia para o século 20. Subtraía-se a historicidade de convicções tradicionais e eventos bíblicos essenciais. Cientistas céticos escreviam livros nos quais negavam os milagres do evangelho, inclusive a ressurreição física de Jesus, arrancando assim o coração do corpo do evangelho cristão e extinguindo a fé de muitos membros das grandes igrejas.

Curiosamente, com o surgimento do movimento “Deus está morto” na década de sessenta, o desaparecimento do cristianismo tradicional tornou-se aceitável mesmo na América “cristã”. Teólogos americanos como Thomas J. J. Altizer, Gabriel Vahanian, Paul Van Buren, David Miller e William Hamilton festejavam no Novo Mundo o triunfo definitivo do assassinato nietzschiano de Deus. O homem racional tornara-se adulto e não precisava mais da “hipótese divina”. Quando meus colegas e eu meditávamos durante o estudo de teologia no fim da década de 1960 sobre essa teologia “cristã” radical, víamos nela o triunfo definitivo do humanismo secular radical.

As previsões sobre o desaparecimento do cristianismo pareciam confirmar-se por meio do seu declínio como força social dominante na sociedade ocidental. Aquilo era novidade, porque em nossa história ocidental mais recente houvera um tempo em que, apesar da predominância do humanismo secular na elite intelectual, quase ninguém questionava publicamente a existência de Deus. Assim, a Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos definiu em 1890 a religião como “as opiniões de uma pessoa sobre seu relacionamento com o seu Criador e as obrigações decorrentes disso de venerar sua natureza e seu caráter, e de obedecer à sua vontade”. Não havia outra definição de Deus além desta, de um Criador pessoal e transcendente. Todavia, principalmente por causa do humanismo secular, isto não é mais o caso no discurso público.

O novo humanismo secular

Assim, o que vem a ser secularismo ou humanismo secular, e no que ele se tornou? Hoje ele é conhecido sob outros nomes. Como disciplina intelectual, é chamado de materialismo filosófico; como movimento social é conhecido como modernismo; uma expressão de certo modo religiosa para isso é ateísmo; no marxismo ele é chamado de teoria política, e para muitas pessoas ele representa um modo de vida irrefletido e padronizado, como se Deus não existisse. Todas essas expressões do secularismo rejeitam o sobrenatural como resíduo de sistemas de crença supersticiosos e primitivos. Sem qualquer referência a Deus, o secularismo tenta descrever racionalmente toda a existência a partir de uma perspectiva terrena e materialista, com o homem no centro dessa existência. Todas essas expressões do materialismo secular podem, portanto, ser consideradas uniformes (se bem que não em sentido espiritual) por tentarem descrever o mundo por meio do mundo, lançando mão da razão humana terrena sem apontar para um Criador externo transcendente. Tornar a razão como última instância é uma forma de adoração.

Apesar da confiante previsão secular sobre o “desaparecimento da religião”, o que ultimamente vem desaparecendo é o humanismo secular.

Essa visão humanista secular continua a marcar as universidades ocidentais. Alguns leitores encontrarão ali as formulações de professores que, em suas salas de aula, revelam uma amarga inimizade contra toda espécie de espiritualidade. O secularismo impregnou todas as áreas da sociedade ocidental e requer para si a posição de único acesso à realidade. O entendimento científico comprometido com o naturalismo seria a única possibilidade de reconhecer algo. Isto, porém, não é a história inteira. No caminho para o século 21 aconteceu algo estranho. Apesar da confiante previsão secular sobre o “desaparecimento da religião”, o que ultimamente vem desaparecendo é o humanismo secular.

Autor

  • Peter R. Jones (Ph.D., Princeton Theological Seminary) é o diretor de truthXchange e professor adjunto de Novo Testamento no Westminster Seminary California, nos EUA. Jones cresceu em Liverpool e foi amigo de infância de John Lennon. Autor de muitos livros, é casado com Rebecca, tem sete filhos e vários netos.

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