O Problema da Dor e do Sofrimento

Quando ocorre uma tragédia, frequentemente surgem perguntas sobre como um Deus onipotente, cheio de compaixão e amor, poderia permitir tais circunstâncias agonizantes de dor e sofrimento. Como entender o mal?

O tiroteio que aconteceu em Las Vegas em 2017 foi o pior da história dos Estados Unidos. A sequência de disparos durou 11 minutos, com 59 mortes e mais de 500 feridos. Muitos perguntam: “Onde estava Deus durante esse acontecimento horrível?”. Quando ocorre uma tragédia, frequentemente surgem perguntas sobre como um Deus onipotente, cheio de compaixão e amor, poderia permitir tais circunstâncias agonizantes de dor e sofrimento.

A primeira resposta é que não se deve ficar alarmado pela existência do mal. As Escrituras afirmam que a humanidade é total e universalmente pecaminosa. Salmos 14.2-3 declara: “O Senhor olha dos céus para os filhos dos homens, para ver se há alguém que tenha entendimento, alguém que busque a Deus. Todos se desviaram, igualmente se corromperam; não há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer”. Como resultado desta declaração, podemos esperar nos defrontar com as consequências do pecado (tais como a dor e o sofrimento).

A presença do mal

A presença do mal no mundo tornou-se aparente quando Lúcifer (e os anjos que o seguiam) rebelou-se contra Deus. Embora os anjos caídos tenham se corrompido como resultado de sua rebelião, as Escrituras não indicam nenhum efeito da revolta deles sobre o universo, tal como uma maldição. A descrição da rebelião de Lúcifer é revelada em Isaías 14.12-14 e em Ezequiel 28.11-15. Lúcifer rebelou-se e se tornou Satanás (hebr., “acusador”, “adversário”), enquanto os outros anjos caídos foram destinados a abismos de trevas e reservados para juízo (2Pedro 2.4; cf. 1Coríntios 6.3), o que significa que eles foram removidos da presença de Deus e estão atualmente refreados até o julgamento final. No entanto, por enquanto eles permanecem ativos no mundo. Parece incoerente, mas é isso que está no texto original.

Isaías 14.12-14

A zombaria contra o rei da Babilônia (Is 14.4) é, em última instância, contra Satanás, que é visto como o verdadeiro governador invisível do mundo (cf. Jo 12.31; 14.30; 16.11). Há outros exemplos nas Escrituras em que Satanás é abordado por meio de um instrumento que não seja ele propriamente dito. O maior exemplo disso está em Gênesis 3.15, onde Deus dirige-se a Satanás, que se apresenta em forma de serpente, provando que naquele réptil, de maneira escondida, estava uma personalidade espiritual que influenciava o referido animal. No Novo Testamento, o Senhor Jesus chegou a falar a Pedro: “Para trás de mim, Satanás!” (Mateus 16.23).

A profecia de Isaías obviamente transcende a tudo que poderia ser dito de um rei terreno (Isaías 14.13-14). Tratando do rei da Babilônia em termos super-humanos, Deus o chama de “estrela da manhã” (v. 12). A Versão King James da Bíblia usa o termo latino equivalente a “Lúcifer” (hebr., “aquele que brilha”), que se tornou conhecido em português, em termos gerais, como um título para Satanás, título esse anterior à sua queda (cf. Lucas 10.18). A beleza e o poder originais de Satanás são evidentes pelo fato de que Jesus também é chamado de “a resplandecente Estrela da Manhã” (Apocalipse 22.16). As cinco menções feitas por Satanás, ou pela “estrela da manhã”, da expressão “[Eu] farei” (Isaías 14.13-14), representam a real essência do pecado, como se evidencia na arrogância extrema: “[Eu] serei como o Altíssimo” (v. 14). O rei da Babilônia pode ter-se exaltado como se fosse um deus (cf. Ezequiel 28.2,9); contudo, Satanás proferiu essa exaltação a si mesmo no sentido máximo.

Ezequiel 28.11-15

Isaías 14 é um paralelo óbvio a Ezequiel 28.11-15. Ezequiel visualizou a carreira de Satanás desde seu início até o julgamento final, enquanto que Isaías descreveu aquela cena de seu término até a Criação original. Satanás era a personalidade e força que influenciavam o governante de Tiro (sendo que, na profecia de Isaías, ele se relacionava ao rei da Babilônia). Deveras, tal interpretação corresponde naturalmente ao contexto e é a transição natural de um personagem para o outro. O governante de Tiro é mencionado primeiro (Ezequiel 28.1-10), e então Satanás é apresentado como a força sobre-humana do poder do governante (v. 11-19).

As Escrituras nos advertem contra nos tornarmos “vaidosos”, “soberbos” e, consequentemente, virmos a cair “na mesma condenação em que caiu o Diabo”.

Os contrastes entre os dois personagens são evidentes, o que prova que a descrição dos versículos 11-19 não pode ser limitada, em extensão, a um mero rei terreno. Por exemplo, o “governante” de Tiro (v. 2) é diferente do “rei de Tiro” (v. 12). O primeiro líder é chamado de “homem” (v. 2,9), enquanto que o prodigioso líder nos versículos subsequentes é citado como um “querubim guardião” (v. 14,16). Além disso, os superlativos usados para o segundo personagem (“cheio de sabedoria e de perfeita beleza”, v. 12; “estava no Éden, no jardim de Deus”, v. 13; “você era inculpável em seus caminhos”, v. 15) são suficientes para que se entenda Satanás como o indivíduo citado nos versículos 11-19. Ezequiel descreveu o “querubim guardião” (28.14) como sendo orgulhoso por causa de sua beleza (v. 17) e “inculpável” em seus caminhos até o momento em que nele “se achou maldade” (v. 15). Por esta razão, as Escrituras nos advertem contra nos tornarmos “vaidosos”, “soberbos” e, consequentemente, virmos a cair “na mesma condenação em que caiu o Diabo” (1Timóteo 3.6).

O mal vindouro

Quando o Senhor Deus colocou Adão e Eva no jardim do Éden, a única proibição que ele fez foi que não comessem “da árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gênesis 2.8-17). Satanás tentou Eva a comer do fruto proibido; ela comeu, e depois estimulou seu marido, Adão, a fazer o mesmo. “… o pecado entrou no mundo” assim que Adão cedeu (Romanos 5.12), e então os pais originais da humanidade passaram a ter uma natureza caída, a qual eles transmitiram a toda sua progênie. Os anjos caídos se corromperam por causa do mal moral, e agora essa corrupção entrou em toda a raça humana. Desde que Caim cometeu o primeiro homicídio, a humanidade, por séculos e mais séculos, tem cometido males semelhantes contra outros seres humanos.

As Escrituras prometem, sim, que a criação um dia será “libertada da escravidão da decadência”, que será quando Deus estabelecer seu reino de “justiça, paz e alegria no Espírito Santo”.

A maldição sobre a terra não é meramente relativa ao crescimento de “espinhos e ervas daninhas” (Gênesis 3.17-18), mas se refere especificamente ao mal físico que afetará toda a natureza. Isso inclui os efeitos danosos das bactérias e germes que causam epidemias na vida dos ani-mais, dos seres humanos e das plantas. As doenças são transmitidas de uma geração à outra porque os genes são igualmente afetados. As Escrituras prometem, sim, que a criação um dia será “libertada da escravidão da decadência” (Romanos 8.21), que será quando Deus estabelecer seu reino de “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Romanos 14.17).

A realidade do mal

Teodiceia é uma resposta à realidade do mal, que leva em consideração a onibenevolência e a onipotência de Deus. Leibniz deu origem ao termo “teodiceia” (em sua obra Théodicée, de 1710) a partir das palavras gregas theos (“Deus”) e dike (“justiça”). Uma defesa (apologética) difere de uma teodiceia porque, em vez de tentar fornecer uma resposta para a existência do mal, a apologética busca provar que a crença em Deus é racional a despeito da realidade da dor e do sofrimento. Não obstante, a resposta teodicista e a defesa apologética frequentemente coincidem, e o termo “teodiceia” é geralmente usado em referência a uma apologética bíblica.

Enquanto a fé cristã admite a realidade do mal, o budismo busca eliminar o desejo, pois este é a causa percebida do sofrimento. Em outras palavras, o sofrimento é causado pelo desejo de existir, em parte, como um ego independente (samudaya). Os budistas estão profundamente preocupados em superar a realidade de que a vida é repleta de sofrimentos (dukkha); contudo, devem negar a realidade da dor e do sofrimento para superá-la. Os cultos da ciência da mente, tais como a ciência cristã, ensinam uma crença chamada monismo (que significa “tudo é um”). O monismo é uma teoria filosófica que afirma que tudo no mundo é um componente de uma substância ou é reduzível a uma substância.

Existe apenas uma verdadeira realidade, que é a essência de toda a bondade. Portanto, de acordo com sua verdadeira natureza, tudo que existe já é divino e perfeito. A perfeição divina é a única realidade; por isso, quaisquer perspectivas que sejam divergentes desta devem ser a consequência do pensamento errôneo. De acordo com as ciências da mente, não existe realidade do mal na mente divina; pelo contrário, tais percepções são o resultado da falácia ou de ilusões mentais. O paralelo mais próximo ao pensamento de Mary Baker Eddy (1821-1910), que desenvolveu as ideias da ciência cristã, é o conceito hindu de uma realidade solitária que acomoda todas as manifestações daquela realidade, daquela substancialidade, e assim a natureza ilusória de tudo que vá além dela.

As Escrituras declaram que o mal é uma realidade, e é um profundo desserviço para a própria pessoa negar a existência dele.

O judaísmo ensina que o sofrimento é um aspecto inescapável da existência física, porém, como um processo de purificação, ele pode ser redentor. O islamismo nega que Jesus tenha sofrido a morte na cruz, pois eles creem que um Deus onipotente jamais abandonaria um profeta à morte. Jesus Cristo confrontou a realidade do mal e foi vitorioso sobre essa realidade ao resolver o problema do pecado, o qual é a causa da dor e do sofrimento no mundo. Os cristãos reconhecem que “os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para nós uma glória eterna que pesa mais do que todos eles” (2Coríntios 4.17).

Se o mal for uma mera ilusão, então ainda persistem as questões sobre como se explica a aparência do mal no mundo físico, além da presença da dor e do sofrimento. Se alguém negar a realidade do mal, não haverá nenhuma razão convincente para o esforço moral. Por exemplo, não há propósito em lutar por viver uma vida moral se o mal for meramente uma ilusão. Além disso, negar a existência do mal é viver sem correspondência com a realidade como ela de fato é e sem harmonia com a realidade como ela de fato é. Seriam as doenças simplesmente percepções erradas da mente? Certamente seria tolice negar a presença de algo que ameaça a vida no corpo, e seria igualmente absurdo não reconhecer o que realmente existe dentro do corpo. As Escrituras declaram que o mal é uma realidade, e é um profundo desserviço para a própria pessoa negar a existência dele. Deus encoraja seu povo a reconhecer a realidade da dor e do sofrimento, e este é o motivo pelo qual o salmista pode declarar: “Eu cri, ainda que tenha dito: Estou muito aflito” (Salmos 116.10).

Autor

  • Ron J. Bigalke

    Ron J. Bigalke (Ph.D., Tyndale Theological Seminary) fundou em 1999 a missão Eternal Ministries junto com sua esposa. Membro da diretoria do Ministério Chamada nos Estados Unidos, Bigalke colabora frequentemente em revistas, livros e artigos para a internet. Além disso, é o editor-geral de quatro obras. Sua ênfase atual está nas áreas de apologética, estudo bíblico, pensamento eclesiástico, historiografia, teoria política e teologia. Casado com Kristin, possui dois filhos.

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