O que a Bíblia realmente ensina sobre a Trindade? Como devemos entender essa doutrina tão importante?
Uma vez que a Bíblia é a revelação escrita de Deus – o Ser eterno, onisciente e onipresente – aos homens – seres mortais e limitados –, não deve causar surpresa que haja certos ensinos bíblicos mais difíceis de entender. A doutrina da Trindade entra nessa categoria.
Poucas afirmações da Bíblia são tão importantes e enigmáticas quanto a de que há “três pessoas distintas em uma única essência divina”, como define J. Scott Horrell, um professor de teologia que dedicou anos de sua vida ao estudo dessa doutrina.[1]
Podemos ver a importância da crença no Deus triúno pelo fato de ter sido “a primeira doutrina a ser elaborada de forma plena”,[2] sendo também uma das coisas que distingue o cristianismo de todas as demais religiões.[3]
Mas o que a Bíblia de fato ensina sobre esse assunto? Como devemos entender a Trindade? Acredito que existem oito afirmações que nos ajudam a entender esse ensino bíblico,[4] por mais que nunca de forma completa. Neste texto, gostaria de abordar brevemente cada uma delas.
1. Há um único Deus
O primeiro passo na investigação do Deus triúno nos leva ao Antigo Testamento. Embora todos os leitores da Bíblia percebam que o Antigo Testamento tem menos a revelar sobre a Trindade, acho que é importante reconhecermos a grande contribuição das Escrituras hebraicas para a doutrina trinitária: a verdade de que há um só Deus, não muitos.
O texto-chave é o Shemá Israel (literalmente, “Escute, Israel”), o qual encontramos em Deuteronômio 6.4-5: “Escute, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Portanto, ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com toda a sua força”. Essa é a passagem mais importante em toda a Lei e que deveria ser memorizada por todos aqueles debaixo da aliança de Deus com a nação de Israel (v. 6-9).
A grande contribuição das Escrituras hebraicas para a doutrina trinitária é a verdade de que há um só Deus, não muitos.
No entanto, o interessante é que até mesmo essa verdade fundamental do Antigo Testamento não exclui a possibilidade de uma pluralidade na divindade. Horrell observa que o termo hebraico traduzido como “único” (aechad) no versículo 4 “pode se referir a uma unidade composta – ou seja, a ‘um em muitos’”.[5] Podemos entender melhor a função dessa palavra analisando Gênesis 2.24, onde o homem e a mulher, ao se casarem, se “tornarão uma só carne”, onde é usada a mesma palavra. Que Moisés usou esse termo é significativo, uma vez que há uma palavra hebraica para “apenas um, único, solitário” (yachid), que, contudo, nunca é usada para descrever Deus!
O Novo Testamento segue a mesma linha ao afirmar que há apenas um Deus. Em Efésios 4.3-6, por exemplo, Paulo escreve: “Fazendo tudo para preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz. Há somente um corpo e um só Espírito, como também é uma só a esperança para a qual vocês foram chamados. Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos”. Outra passagem clara é Tiago 2.19, provavelmente a primeira epístola a ser escrita: “Você crê que Deus é um só? Faz muito bem! Até os demônios creem e tremem”.
2. O Pai é Deus
A divindade de Deus Pai é a mais fácil de ser provada, nunca foi contestada e a crença nela é compartilhada tanto pelo cristianismo quanto pelo judaísmo. Todas as passagens mencionadas acima já servem como prova da divindade de Deus Pai. E ainda existem inúmeras outras no Novo Testamento.
Quanto a Deus ser caracterizado como “Pai”, já temos essa descrição no Antigo Testamento, por exemplo: “É assim que vocês retribuem ao Senhor, povo tolo e insensato? Não é ele o Pai de vocês, que os adquiriu, que os fez e estabeleceu?” (Deuteronômio 32.6).
3. O Filho é Deus
Que Jesus é Deus ficou claro para os cristãos desde cedo. Temos duas declarações famosas de dois de seus discípulos e futuros apóstolos, uma antes e outra depois da ressurreição: Pedro declarando que “o senhor é o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mateus 16.16) e Tomé exclamando “Senhor meu e Deus meu!” (João 20.28). E Jesus não nega o conteúdo delas nem repreende seus autores.
Uma passagem central é a de Filipenses 2.6-11, que talvez tenha sido um cântico antigo utilizado pelas igrejas do primeiro século e citada por Paulo em sua carta. No versículo 6, lemos: “Que, mesmo existindo na forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus algo que deveria ser retido a qualquer custo”. O termo grego traduzido por “forma” (morphe) significa “o conjunto de características que faz de uma coisa o que ela é”, denotando “a genuína natureza de algo”.[6] Ou seja, aparentemente encontramos um hino com elementos plurais na divindade já nas primeiras comunidades cristãs, na metade do primeiro século!
Aparentemente encontramos um hino com elementos plurais na divindade já nas primeiras comunidades cristãs, na metade do primeiro século!
Também temos uma afirmação clara e importante do apóstolo João, o último apóstolo a morrer. Escrevendo perto do final do primeiro século, João já precisou defender a encarnação de Jesus e sua divindade. Em sua primeira carta, podemos ler, por exemplo: “Também sabemos que o Filho de Deus já veio e nos tem dado entendimento para reconhecermos aquele que é o Verdadeiro. E nós estamos naquele que é o Verdadeiro, em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna” (1João 5.20).

4. O Espírito é Deus
Um dos textos centrais que mostram a divindade do Espírito Santo é a fala de Pedro a Ananias em Atos 5.3-4, no qual lemos: “Então Pedro disse: ‘Ananias, por que você permitiu que Satanás enchesse o seu coração, para que você mentisse ao Espírito Santo, retendo parte do valor do campo? Não é verdade que, conservando a propriedade, seria sua? E, depois de vendida, o dinheiro não estaria em seu poder? Por que você decidiu fazer uma coisa dessas? Você não mentiu para os homens, mas para Deus’”. Podemos ver que Pedro está usando “Espírito Santo” e “Deus” de forma intercambiável.
Talvez ainda mais importante e definitivo para essa discussão é o alerta do próprio Jesus em Mateus 12.31-32: “Por isso, digo a vocês que todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Se alguém disser alguma palavra contra o Filho do Homem, isso lhe será perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, isso não lhe será perdoado, nem neste mundo nem no porvir”. Seja qual for a interpretação da blasfêmia, a importância do Espírito Santo é evidente.
5. O Filho não é o Pai
As distinções das três pessoas da Trindade são bem perceptíveis no evangelho de João. Que o Filho não é o Pai pode ser extraído das múltiplas afirmações de Jesus, tais como: “Não me detenha, porque ainda não subi para o meu Pai” (20.17); “como o Pai me amou, também eu amei vocês” (15.9); “e agora, ó Pai, glorifica-me contigo mesmo com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo” (17.5); e muitas outras.
6. O Filho não é o Espírito
Que Jesus também não deve ser igualado ao Espírito Santo fica claro nas afirmações de Jesus aos seus discípulos pouco antes de sua Paixão. Ele lhes fez a seguinte promessa: “E eu pedirei ao Pai, e ele lhes dará outro Consolador, a fim de que esteja com vocês para sempre: é o Espírito da verdade…” (João 14.16-17).
Nesta e em outras passagens, vemos como o Espírito Santo realizaria um papel essencial na vida dos seguidores de Cristo após sua partida deste mundo. Essa também foi a interpretação do apóstolo João, um dos principais seguidores e membro do círculo íntimo de Jesus, pois ele comenta:
“No último dia, o grande dia da festa, Jesus se levantou e disse em voz alta: ‘Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva’. Isso ele disse a respeito do Espírito que os que nele cressem haviam de receber; pois o Espírito até aquele momento não tinha sido dado, porque Jesus ainda não havia sido glorificado.” (João 7.37-39)
7. O Espírito não é o Pai
A distinção entre Pai e Espírito pode ser vista na primeira passagem do ponto anterior, bem como nos versículos posteriores: “Mas o Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse ensinará a vocês todas as coisas e fará com que se lembrem de tudo o que eu lhes disse” (João 14.26). O Consolador Espírito Santo é claramente distinguido do Pai, que o envia.
Que o Espírito é uma pessoa distinta, não apenas uma espécie de emanação do Pai ou do Pai e do Filho, pode ser demonstrado no fato de ele falar de si mesmo na primeira pessoa quando revela seu desejo aos líderes da igreja em Antioquia de enviar Paulo e Barnabé na primeira viagem missionária: “Enquanto eles estavam adorando o Senhor e jejuando, o Espírito Santo disse: ‘Separem-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado’” (Atos 13.2).
8. Há só um Deus, não três
De acordo com Horrell, existem mais de cem passagens no Novo Testamento que falam de Pai, Filho e Espírito Santo como um conjunto![7]
O principal versículo que apresenta a pluralidade e a unidade da Trindade está na Grande Comissão (Mateus 28.18-20). Ali, temos a ordem de Jesus aos seus discípulos para batizarem os novos discípulos “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (v. 19). Perceba que eles devem ser batizados num só nome (singular), não nos nomes.
Explorando a Teologia Cristã: Revelação, Escritura e Trindade
editado por Nathan D. Holsteen e Michael J. Svigel
Este primeiro volume da trilogia traz os fundamentos das doutrinas da revelação escrita de Deus (Bíblia) e da Trindade de uma forma concisa e acessível, revelando perigos a evitar, fornecendo um panorama histórico das doutrinas, aplicações práticas e mais.
Essa questão gramatical torna-se ainda mais relevante quando lembramos de quem a pronunciou e de quem a registrou por escrito: “Para um judeu como Jesus (e o escritor Mateus), incluir três pessoas no “Nome” singular (muito provavelmente referindo-se ao nome sagrado de Deus) equivaleria a uma blasfêmia – se não fosse absolutamente verdade!”.[8]
A primeira confissão pública, no ato do batismo, era automaticamente uma afirmação do Deus triúno! E a igreja continua realizando isso até os dias de hoje.
A importância desse versículo se dá por muitos fatores. Quando pensamos que os novos convertidos eram batizados com essa fórmula trinitária, percebemos que o ensino do Deus triúno já estava presente desde o começo da caminhada de cada pessoa com Cristo e na vida da igreja. A primeira confissão pública, no ato do batismo, era automaticamente uma afirmação do Deus triúno! E a igreja continua realizando isso até os dias de hoje.
Conclusão
Se, depois de analisar essas oito afirmações bíblicas, você ainda ficou com alguma dúvida, posso dizer: bem-vindo ao clube! Quando estudamos o que a Bíblia diz sobre Deus ser um ser em três pessoas, podemos concluir juntamente com o teólogo Millard J. Erickson: “Em última análise, a Trindade é incompreensível”.[9]
Erickson continua escrevendo que “a doutrina da Trindade […] é tão absurda do ponto de vista humano que ninguém a poderia ter inventado. Nós não sustentamos a doutrina da Trindade porque ela é autoevidente ou logicamente convincente. Nós a sustentamos porque Deus revelou que é assim que ele é”.[10] Ou seja, é necessário ter fé para se crer na Trindade.
Notas
- Nathan D. Holsteen e Michael J. Svigel, eds., Explorando a Teologia Cristã: Revelação, Escritura e Trindade, vol. 1, trad. Doris Körber (Porto Alegre: Chamada, 2025), p. 170.
- Millard J. Erickson, Teologia Sistemática, trad. Robinson Malkomes, Valdemar Kroker e Tiago Abdalla Teixeira Neto (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 317.
- Ibid., p. 316.
- Holsteen e Svigel, Explorando a Teologia Cristã, vol. 1, p. 169.
- Ibid., p. 188.
- Erickson, Teologia Sistemática, p. 319.
- Holsteen e Svigel, Explorando a Teologia Cristã, vol. 1, p. 220.
- Ibid., p. 221.
- Erickson, Teologia Sistemática, p. 334.
- Ibid., p. 337.
Autor
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Sebastian Steiger (B.Th., Staatsunabhängige Theologische Hochschule Basel) é editor do Ministério Chamada no Brasil. Também formado em administração, vive em Porto Alegre/RS com sua esposa, Débora.
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