Quão Importante é a Doutrina Bíblica?

Este artigo discute algumas das desculpas para a negligência da doutrina entre os cristãos e alguns motivos pelos quais, em contraste, ela é importante e aplicável na prática.

Infelizmente irromperam hoje tempos difíceis para a doutrina bíblica, muito embora isso não seja uma novidade nem algo que só ocorre em nossos tempos. Veja, por exemplo, a seguinte queixa de um conhecido pregador do século 19. Ele escreve: “Do que carecem os pregadores evangélicos em comparação com seus grandes antecessores do século 18? Falta-lhes doutrina. Eles não estão nem convictos da sua importância nem comprometidos com claros enunciados doutrinários. Dispõem-se rapidamente a buscar desvios no ensino, a omitir certos assuntos e a se pronunciar só com ressalvas”.

Mais de um século depois, um respeitado teólogo avaliou do mesmo modo a situação moderna (a meu ver, com toda razão): “O novo esforço sobre a aplicabilidade prática usual hoje em dia modificou a essência na pregação cristã, o trabalho das instituições de formação teológica e a metodologia interna dos responsáveis pelas obras cristãs e as igrejas. […] Com essa mudança desencadeou-se o toque fúnebre da teologia. […] As editoras que até agora publicavam literatura teológica reduziram nitidamente sua oferta nessa área…”. Basta observar o catálogo atual de livros para constatar que essa observação corresponde perfeitamente à realidade. A parcela de livros sobre a doutrina bíblica é mínima em comparação com a abundância de livros sobre outros temas.

Algumas desculpas para a negligência com a doutrina

1. A doutrina bíblica não é tão importante! Este é provavelmente o argumento mais frequente para negligenciá-la. A experiência seria mais importante! Ou, em outras palavras, a doutrina não é suficientemente prática. Ao longo da minha vida assisti a centenas de cultos em universidades. Pouca coisa me incomodou mais do que as palavras de um pregador que disse: “Hoje serei simplesmente bem prático. A doutrina deixo por conta da sua faculdade”. Que declaração mais superficial! Tal como muitos outros, aquele pregador esqueceu que toda aplicação prática precisa se basear numa doutrina bíblica sadia, e que toda doutrina bíblica deve conduzir a uma aplicação correta. A doutrina sadia e a experiência bíblica precisam andar de mãos dadas. Não se pode ter uma coisa sem a outra.

Ser relevante significa abordar um assunto de modo importante e passível de comprovação. Ser prático significa que algo se refere à ação. Se atribuirmos irrelevância e falta de praticidade à doutrina, ambos os conceitos serão mal aplicados. Ficaria evidente que a própria Bíblia (da qual provém a nossa doutrina) não é nem relevante nem prática. Mas está claro que ninguém pretende atribuir isso à Palavra de Deus – ao menos não em voz alta.

Não esqueçamos o que a Bíblia reivindica para si mesma: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino [isto soa muito didático], para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça [muito relevante], a fim de que o servo de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra [muito prático]” (2Timóteo 3.16-17). Trata-se, portanto, de ser “hábil e capaz de dar conta de todas as necessidades da vida”. Se enfatizarmos esses dois versículos, eles ensinarão claramente que a doutrina bíblica não é apenas relevante (essencial) e prática (aplicável), mas que, além disso, ela transmite toda a habilidade necessária para a vida em todos os aspectos e atividades da vida do crente, e não há nada de irrelevante e inaplicável nisso.

Lembremo-nos de como o apóstolo Paulo aplica a doutrina bíblica a um estilo de vida cristão. Na carta aos Romanos, escrita a uma igreja com a qual ele não se relacionara antes, os primeiros onze capítulos tratam de doutrina cristã básica (pecado, salvação, santificação, futuro). Em seguida, Paulo começa no capítulo 12 a admoestar e instruir a respeito de detalhes necessários para um estilo de vida temente a Deus. Podemos observar muito claramente a mesma sequência na carta aos Efésios (doutrina nos caps. 1-3 e prática nos caps. 4-6) e na carta aos Colossenses (doutrina nos caps. 1-2 e prática nos caps. 3-4), bem como em grau menor também nas outras cartas dele (p. ex., 1Coríntios; Filipenses; 1Tessalonicenses; 2Tessalonicenes).

Principais Temas da Bíblia

por Lewis Sperry Chafer e John F. Walvoord

Um guia geral que apresenta e explica as principais doutrinas da Escritura Sagrada, escrito e organizado por dois dos maiores teólogos do século 20.

2. Uma segunda desculpa para negligenciar a doutrina é que a doutrina bíblica é muito difícil de entender, portanto não deveria ser imposta a ninguém. É por isso que nos aconselham a “não colocar o sarrafo muito alto”. Isso claramente é um bom conselho para algumas situações e alguns ouvintes, mas imagine o que aconteceria se sempre seguíssemos esse conselho. Usemos a ilustração do desenvolvimento de um bebê: ele inicialmente se ergue sobre as mãos e os joelhos; em seguida, engatinha; depois, tenta levantar-se com ajuda; e, por fim, se mantém em pé sozinho. Para poder se manter em pé sozinho ele precisa de muito exercício, precisa espreguiçar-se para subir. A vida cristã é semelhante. Para ficarmos fortes, temos de nos exercitar e estender para cima. Para acelerar esse processo, os professores nas igrejas não deveriam impor expectativas baixas demais.

Que fique bem claro: algumas doutrinas são difíceis de entender, mas isso não deveria nos desencorajar de penetrar profundamente nesses temas bíblicos mais complexos. Acaso deveríamos “amolecer” o nascimento virginal só porque não conseguimos entendê-lo e explicá-lo completamente? Ou deveríamos omitir a doutrina resumida sobre Jesus Cristo em 1Timóteo 3.16, que se refere à sua humanidade, ressurreição e ascensão? Se esses versículos foram parte de um remoto hino de louvor cristão, eles também terão sido parte de uma antiga adoração cristã. Existem ainda outros aspectos misteriosos da divindade e da humanidade de Jesus, de sua morte e de sua ressurreição física que nunca poderemos entender completamente. Mas deveríamos por isso contornar ou omitir essas doutrinas? Estaríamos privando espiritualmente pessoas do alimento que precisam para um ensino bíblico saudável a fim de crescerem e amadurecerem na fé.

O “leite” espiritual é adequado para o estágio inicial, para a “infância” na fé cristã e o crescimento do cristão, mas a maturidade requer alimento sólido.

Quanto à profecia, ouve-se às vezes que “a profecia é excessivamente complicada e controversa. Não deveríamos incomodar as pessoas com isso”. No entanto, muitos pontos de vista da profecia são claros e nítidos. O termo “Filho unigênito” em João 3.16 é bem mais difícil de explicar que a maioria das palavras em passagens bíblicas proféticas.

O “leite” espiritual é adequado para o estágio inicial, para a “infância” na fé cristã e o crescimento do cristão, mas a maturidade requer alimento sólido (Hebreus 5.12-14). O autor da carta aos Hebreus esclarece que o alimento sólido capacita o crente a distinguir – com a ajuda de Deus – entre o bem e o mal. Quem conhece as profundas verdades contidas na Bíblia será capaz de agir de forma justa (correta). A verdade bíblica, a saber, a verdade bíblica inteira, é tanto essencial (relevante) como também prática para a vida do cristão.

3. Um terceiro argumento para varrer a doutrina para baixo do tapete é que a doutrina divide os crentes. Isso é verdade, mas essa não é uma razão legítima para abrir mão do estudo bíblico e da ocupação com a doutrina bíblica. Há muitos temas que dividem a igreja e os crentes. Um aspecto crítico é, por exemplo, a forma de adoração – música, bandas de louvor etc. Por que existem diferentes denominações cristãs? Porque diferentes grupos interpretam de forma diferente determinadas doutrinas da Bíblia e consideram essas diferenças suficientemente importantes para fundar um movimento próprio em torno delas. Opiniões divergentes sobre batismo, dons espirituais e a forma de administração eclesiástica refletem hoje as diferentes interpretações das diversas doutrinas. Se cisões forem algo fundamentalmente errado, seria lógico voltarmos imediatamente à Igreja Católica Romana. Ou deveríamos tentar efetivamente retornar à igreja primitiva do Novo Testamento. Todavia, mesmo ali já havia cisões. Aí nos lembramos imediatamente da igreja de Corinto, na qual havia desunião em torno do exercício dos ministérios espirituais (1Coríntios 1.12-13), além de diferentes noções sobre doutrinas fundamentais a respeito da ressurreição do corpo (1Coríntios 15), bem como sobre a aplicação correta da disciplina eclesiástica (2Coríntios 2.5-11). Mesmo assim, porém, o apóstolo diz à igreja que “é até necessário que haja partidos entre vocês, para que também os aprovados se tornem conhecidos entre vocês” (1Coríntios 11.19). “Partidos” são grupos que defendem opiniões divergentes, o que por sua vez leva os irmãos que assumem o ponto de vista correto a se distinguirem dos demais.

Lembremos também do grave desentendimento e da separação de Paulo e Barnabé por causa da questão de levar João Marcos com eles na segunda viagem missionária ou não (Atos 15.36-40). Tudo aquilo ocorreu devido a uma avaliação divergente da maturidade espiritual de João Marcos. Ambos os “contraentes” criam ter razão. Nesse caso, Deus usou o conflito para enviar duas equipes missionárias em vez de uma só.

Portanto, não é necessariamente errado os crentes terem opiniões divergentes entre si. É admissível que isso ocorra, mas não constantemente. Além disso, também podemos lembrar que diferenças doutrinárias podem unir, o que muitas vezes é bom. Nossa responsabilidade é estudar, entender e pregar a fundo a doutrina bíblica.

Precisamos absorvê-la e aplicá-la.

Algumas razões para a importância (e aplicabilidade prática) da doutrina

A doutrina serve de base para a vida cristã e como ponto de partida para qualquer atividade cristã. Sobre a doutrina da nossa morte com Cristo repousa o chamado para a plena dedicação da nossa vida (Romanos 6.1-13). Como sabemos pela Bíblia que Deus não faz acepção de pessoas, nós também não deveríamos avaliar as pessoas na igreja segundo critérios como pobreza ou riqueza (Tiago 2.1-4). A esperança do retorno do nosso Senhor deverá purificar nossa vida (1João 3.3). Por causa do amor do Senhor Jesus Cristo (seu amor por mim e meu amor por ele), colocamos nossa vida totalmente sob a soberania dele (2Coríntios 5.14). Como conhecemos a doutrina da nossa futura avaliação, somos motivados a gerar frutos para o Senhor por meio do nosso serviço (2Coríntios 5.10). Todos esses importantes deveres cristãos estão baseados na verdade doutrinária.

Somente quem conhece a verdade poderá reconhecer doutrinas e atitudes erradas e enfrentá-las.

Somente quem conhece a verdade poderá reconhecer doutrinas e atitudes erradas e enfrentá-las. Em 1Timóteo 1.8-10 há uma lista com mais de 13 diferentes estilos de vida e procedimentos que se opõem à sã doutrina (p. ex., desrespeito à lei, iniquidade, mentira, homossexualidade).

Como o fim dos tempos está próximo, torna-se cada vez mais importante conhecer a sã doutrina, pois somente assim poderemos dizer às pessoas não aquilo que querem ouvir “porque lhes coça nos ouvidos”, mas aquilo que precisam ouvir para que não se afastem da verdade da Palavra de Deus (2Timóteo 4.1-4).

O ensino de recém-convertidos é parte essencial do cumprimento da incumbência missionária (Mateus 28.19). A sã doutrina é literalmente algo sadio, razão pela qual a compreensão, o ensino e a pregação da doutrina bíblica proporcionam bem-estar espiritual ao crente. A mesma palavra citada em 3João 2 para designar saúde física assinala a doutrina espiritualmente sadia nas cartas pastorais (1Timóteo 4.13,16; 5.17; 2Timóteo 1.13; 4.3; Tito 1.9,13; 2.1,7). À luz desses versículos, quem ainda afirmará que a doutrina bíblica não é prática? Observe-se, além disso, que alguns desses versículos se dirigem expressamente a Timóteo, visando assim os colaboradores e líderes de uma igreja (1Timóteo 4.13,16; Tito 2.1,7).

Alguns efeitos essenciais e práticos resultam da importância da doutrina. Antes de tudo, eles levam em conta que cada um segue algum determinado sistema doutrinário, ainda que possivelmente não perceba isso ou talvez até o negue. A doutrina pode ser sistemática ou desorganizada e até bastante difusa, mas todos nós agimos com base em alguma suposição doutrinária. Isso se aplica tanto ao “livre pensador” ateu e agnóstico como a um bem estruturado calvinista ou arminiano. Por isso, o pregador e mestre – não importa se profissional ou leigo – precisa se ocupar com a teologia, seja como ou onde ele ministra.

Segundo, não subestime a semântica – a doutrina do sentido das palavras. Quantas vezes já presenciei algum aluno querer justificar um argumento frágil dizendo que “isto é apenas uma questão de linguagem (semântica)”. Tal declaração pretende desculpar um vocabulário ou uma formulação sem nitidez ou até errado. O aluno nem imagina o quanto ele tem razão ao dizer que aquilo é “uma questão de linguagem”, porque tudo o que dizemos ou escrevemos ou até pensamos tem a ver com semântica. Ela inclui o estudo do significado das palavras, razão pela qual as palavras que escolhemos ou sua formulação influencia aquilo que queremos transmitir. Portanto, quando estudamos a Palavra de Deus, meditamos nela, a ensinamos, pregamos e aplicamos na vida, precisamos atentar muito bem para as palavras que utilizamos para transmitir a mensagem: elas devem ser precisas, claras e exatas.

Autor

  • Charles C. Ryrie (1925-2016) (Ph.D., University of Edinburgh) foi um renomado autor e teólogo. Escreveu mais de 25 livros que, juntos, venderam mais de 1,5 milhão de cópias. Passou a maior parte de sua carreira como professor de teologia sistemática no Dallas Theological Seminary. Faleceu em 2016, com 90 anos.

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